O Estado de S. Paulo
Não se trata de condenar ou absolver a inteligência artificial, mas de compreender que os seus efeitos serão mais benéficos quanto mais educados forem os seus usuários
Não é de hoje que a inteligência artificial
(IA) está na agenda. A cada avanço da tecnologia, maiores são suas repercussões
nas várias dimensões do agir humano. As formas de IA reverberam em nossas
casas, nas escolas, nas empresas, na cultura, na medicina, no sistema
financeiro, no modo como namoramos, trabalhamos e, por óbvio, no modo como
pensamos e fazemos política.
O surgimento do ChatGPT, em 2022, e logo depois, em intervalos sempre mais curtos, do DALL-E-2, do Baird e do Gemini 1.5, estabeleceu uma forma mais avançada da IA generativa, capacitada para simular a inteligência humana, dialogar com os usuários, escrever, codificar e produzir vídeos. Foi um salto na revolução digital, com desdobramentos imprevisíveis. Há quem pense que a IA adquirirá capacidade humana gradualmente, sem rupturas, e quem afirme que na próxima década ela passará por cima de tudo. Hoje, a questão é saber quando isso acontecerá e com quais resultados.
Não são poucos os que anteveem na nova
modalidade uma espécie de “morte da cultura” e da capacidade de abstração. Se
se tornou possível pedir a uma máquina virtual a elaboração de códigos, a
redação de mensagens e a coleta de dados, o que mais faltaria para que os
humanos deixassem de ler, pensar e pesquisar por conta própria? O risco de
plágio cresceria enormemente. Com o tempo e o uso intensivo das novas
ferramentas, o embotamento mental e o declínio da criatividade seriam
inevitáveis. Será mesmo assim?
A complexidade do tema é enorme. Como em toda
inovação, o avanço da IA promove utopias e distopias. Cria legiões de
pessimistas e outras tantas de otimistas. Os primeiros vislumbram cenários de
horror, os segundos destacam vantagens e benefícios. Ora se salientam seus
impactos negativos sobre o trabalho, os empregos e o meio ambiente, por
exemplo, ora se destaca aquilo que o avanço tecnológico representa em termos de
novas formas de produção, de redução da força física e do desgaste mental do
trabalho, sem falar dos ganhos de escala.
Ambos os cenários têm razoabilidade,
especialmente quando pensados sem maiores ênfases dramáticas ou ideológicas. Os
sistemas de IA impõem sua lógica e forçam adaptações. Esbarram sempre, porém,
nas circunstâncias históricas concretas, no modo como a sociedade e a cultura
se apresentam em cada pedaço da Terra, na maneira como as populações interagem
e utilizam a IA. A tecnologia continua a ser monitorada e teleguiada por
humanos. Não faz voos solo. Ao menos por enquanto.
Claro, tudo deve ser captado na devida
dimensão. Os que monitoram e direcionam a IA estão integrados ao sistema
capitalista de produção de mercadorias. Buscam lucros. A própria tecnologia não
tem sido cabalmente controlada: os Estados são reféns dela e não sabem como
regulá-la. No plano dos cidadãos, a situação é ainda pior: não podemos evitar
as inovações, mas as incorporamos sem reflexão crítica e sem conhecimento.
Somos arrastados por elas e passamos a lidar com elas de maneira estritamente
instrumental.
Ferramentas como o ChatGPT estão se
associando a jornais e agências de notícias (Le Monde, El País, Associated
Press) para serem treinadas e poderem fornecer informações mais precisas a seus
usuários, atuando como uma linha auxiliar do jornalismo profissional. Na outra
ponta, o Parlamento Europeu aprovou regras mais abrangentes para regulamentar a
IA, buscando monitorar e frear os usos mais perigosos de modelos como o
ChatGPT. A batalha nessa frente promete ser intensa nos próximos anos,
misturando valores éticos, interesses sociais e apetites empresariais.
Num ano eleitoral, como será o de 2024 no
Brasil e em muitos outros países, as atenções se dirigem para aquilo que a IA
poderá produzir em termos de manipulação e desinformação. O uso malicioso das
ferramentas de IA poderá converter a persuasão em mera doutrinação, fazer com
que o diálogo entre candidatos e eleitores seja sugado pelos inúmeros buracos
negros das redes, facilitar a falsificação da imagem dos candidatos e
dispensá-los da apresentação de propostas consistentes. Poderá travar a
ponderação dos eleitores, induzi-los a caminhar cegamente numa ou noutra
direção, espalhando preconceitos e formas dissimuladas de racismo.
Isso significa duas coisas. Primeiro: os
poderes públicos, as instituições democráticas, os tribunais eleitorais
precisam fazer sentir sua força e sua capacidade de controle, no mínimo para
impedir abusos, ajudar os eleitores e garantir a lisura dos pleitos. Segundo:
um freio contra o uso indevido da IA está na educação política dos cidadãos, na
sua capacidade de recepcionar criticamente as mensagens eleitorais e
neutralizar as estratégias de desinformação.
Não se trata, portanto, de condenar ou
absolver a IA, mas sim de compreender que os efeitos da IA serão mais benéficos
quanto mais educados forem os seus usuários. Sem boas escolas, bons sistemas de
ensino, sem a valorização das Humanidades e da cultura, o terreno estará sempre
sob o domínio do lado escuro da força.
*É professor titular de Teoria Política da Unesp
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