sábado, 27 de abril de 2024

André Barrocal - E o salário, ó…

CartaCapital

Os ganhos recentes não compensam a estagnação da renda do trabalho na última década

Vem aí o 1° de Maio e os 100 milhões de trabalhadores brasileiros têm pouco a comemorar. A taxa de desemprego está nos menores níveis vistos recentemente no País, entre 7,5% e 8%, mas o salário médio permanece o mesmo há uma década, o que significa empobrecimento e um cotidiano bem mais duro. Em janeiro de 2014, a renda mensal média de quem vivia do trabalho era de 2.923 reais. Em dezembro de 2023, de 3.063 reais, 4% a mais. Nesse período de dez anos, o valor oscilou entre 2,8 mil e 3,1 mil. A inflação geral (IPCA) no período foi de 76%. A gasolina subiu 90%. Alimentos e bebidas, 97%. A conta de luz, 134%. “Essa perda de poder de compra é uma dimensão não visível no salário médio. Produz um brutal arrocho. O orçamento não cabe dentro do salário”, diz o sociólogo e consultor para temas trabalhistas Clemente Ganz Lúcio, ex-diretor do Dieese, o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos.

Segundo ele, os governos dos últimos dez anos, incluído o atual, têm culpa pela carestia, pois suas políticas econômicas permitiram o encarecimento da comida, da eletricidade e dos combustíveis. O ­Dieese calcula o preço da cesta básica em algumas cidades. No início de 2014, em São Paulo, custava 11% do salário médio. No mês anterior à posse de Lula, 26%. Em dezembro passado, 25%. Pesquisas internas feitas no fim de 2023 pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência identificaram que a população percebe tudo caro: luz, remédio, água, carne vermelha, botijão de gás. Na quarta-feira 24, o governo mandou ao Congresso a complementação da reforma tributária, com alívio de impostos sobre a cesta básica. “Estamos gerando empregos, porém com remuneração muito baixa. Esse é o desafio que se tem no mercado de trabalho”, afirma Luiz Marinho, ministro do Trabalho.

A alta dos rendimentos desde 2014 foi de meros 4%. A inflação oficial acumulou 76% no mesmo período

O IBGE, fonte dos dados salariais e inflacionários, acaba de constatar: a fatia da renda laboral no conjunto da economia era de 43,5% em 2014, atingiu o ponto máximo no ano seguinte (44,6%) e, em 2021, último número disponível, caiu ao menor patamar do século (39,2%). Comparação: na Europa é de 48% e nos Estados Unidos, de 53%. A distância entre a fatia laboral e a fatia do lucro empresarial no PIB encurtou bastante, de 10 pontos em 2014 para 2 pontos em 2021.

Na avaliação de Marinho, a estagnação salarial em uma década resulta da combinação de um trio de fatores: fim da política de valorização do salário mínimo, economia em marcha lenta e reforma trabalhista. O Brasil teve duas leis, com regras iguais, para dar ganhos ­reais ao salário mínimo entre 2011 e 2018. Em 2019, ano da posse de Jair Bolsonaro, a política foi abandonada. Praticada nas gestões anteriores de Lula mesmo sem leis, ela garantiu 77% de aumento do piso entre 2004 e 2018. Foi ressuscitada, como lei, no ano passado. No caso do PIB, houve retração em 2015 e 2016, tempos do abortado segundo mandato de Dilma Rousseff, depois andou por 1% ao ano até 2019, aí veio a pandemia a deixar tudo zerado no saldo de 2020 e 2021. Em 2022 e 2023, o PIB cresceu cerca de 3% ao ano. Pouco para as carências nacionais, vide os contracheques.

Lúcio concorda com o ministro quanto às causas da estagnação salarial. E adiciona um fator, a desindustrialização. A participação do emprego industrial no estoque de vagas encolheu de 14%, em janeiro de 2014, para 12,7%, em dezembro de 2023. O salário médio na indústria (2,9 mil em fevereiro de 2024) é maior do que na agricultura (1,9 mil) e no comércio (2,5 mil). O setor rural, que se jacta da pujança, não apenas paga mal, como também representa pouco no total de vagas, 8%. O comércio responde por 19% do estoque. Os melhores salários estão no setor público e na área de informática, ambos com média de 4,3 mil mensais em fevereiro. O primeiro acolhe 17,5% dos 100 milhões de trabalhadores e o segundo, 12,3%.

Secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, Guilherme Mello aposta na recomposição dos salários e da participação da renda laboral no conjunto da renda nacional daqui em diante. Segundo ele, em razão dos aumentos do mínimo, de mais dinamismo do PIB (embora a equipe econômica projete para 2024 uma expansão inferior àquela de 2023) e da queda na desocupação. “Com a redução do desemprego e do desalento, a capacidade dos próprios trabalhadores de se organizarem e pleitearem recuperação salarial é maior. Se está todo mundo desempregado, aceita o que tem”.

O enfraquecimento dos sindicatos não foi consequência somente do desemprego. Este atingiu 13,9% em março de 2017, maior índice pré-pandemia. Naquele ano, o então governo de Michel Temer aprovou no Congresso uma reforma trabalhista que acabou com a contribuição obrigatória dos trabalhadores às entidades sindicais. A falta de fonte de financiamento baqueou as organizações. No fim do ano passado, o Supremo Tribunal Federal julgou constitucional as convenções coletivas terem cláusulas de contribuição assistencial aos sindicatos, mas a decisão ainda não vingou por falta de normas claras. “Vai depender muito da reação do sindicato empresarial”, afirma Marinho.

O ministro reconhece, e critica, o enfraquecimento do sindicalismo, mas vê “comodidade” das centrais sindicais. As negociações salariais, avalia, deveriam reivindicar aumentos maiores. “Os pisos das categorias têm continuado iguais, eles vão ser engolidos pelo salário mínimo.” Marinho aponta ainda “comodidade empresarial” por trás da estagnação salarial em uma década. Das negociações coletivas mapeadas pelo Dieese entre 2014 e 2023, dois terços conseguiram reajuste superior à inflação e um terço, igual ou abaixo. Nos dez anos anteriores, tinham sido mapeadas 8.046, das quais 77% com ganho acima da inflação e 22%, igual ou inferior. No governo Bolsonaro, 51% resultaram em reajuste igual ou menor que a inflação.

Criticadas por Marinho, as centrais farão um ato público, seguido de shows, no dia 1º de Maio, a sexta vez que estarão unidas na data. Será no estacionamento do estádio do Corinthians, em São Paulo, com a presença de Lula, que também compareceu em 2023. O slogan do ato será “Por Um Brasil Mais Justo”. As entidades vão defender emprego e aposentadoria dignos, corte do juro do Banco Central, correção da tabela do Imposto de Renda, valorização do serviço público e igualdade salarial entre homens e mulheres. Em 2023, o governo havia anunciado a volta dos ganhos reais do salário mínimo e a elevação de 1,9 mil para 2,6 mil da isenção do Imposto de Renda. Agora não deverá anunciar nada, segundo Marinho, para quem “a situação não é nada boa” para a causa trabalhista no Brasil. Motivo da “situação”: palidez sindical diante de um Congresso patronal e de um Judiciário com pendores liberais.

No Congresso, há várias tentativas de barrar medidas governamentais pró-trabalhadores. É o caso da Lei de Igualdade Salarial entre homens e mulheres, da restrição do trabalho aos domingos e feriados e da regulamentação do serviço de motoristas de aplicativos. As mulheres são 43% dos 100 milhões de empregados (proporção inferior do que na população geral, de 51,5%) e 53% dos desempregados. Elas ganham, em média, 21% menos do que os homens, conforme o IBGE. Há uma década, era pior (29%). A CLT original, de 1943, proibia a discriminação. No ano passado, o governo propôs mudá-la para criar mais instrumentos, a fim de coibir a disparidade. Assim nasceu a Lei 14.611, de julho de 2023, que colocou a discriminação ao alcance de multas mais pesadas e de cobrança judicial por dano moral. Além disso, definiu-se que empresas acima de cem funcionários são obrigadas a entregar relatórios semestrais ao governo sobre a folha salarial.

Após a lei, o governo baixou duas normas complementares, com procedimentos a ser cumpridos. Elencou as informações que devem constar do relatório e fixou um prazo de 90 dias para a empresa adequar-se, quando seu relatório mostrar disparidade salarial, por exemplo. As confederações da indústria e do comércio recorreram ao Supremo. No Parlamento, uma deputada propôs um decreto legislativo contra as normas complementares. Foi a paulista Adriana Ventura, do partido Novo, sócia de duas empresas, uma das quais de consultoria em gestão empresarial.

“Com a redução do desemprego e do desalento, aumenta o poder de barganha dos trabalhadores”, diz Guilherme Mello, secretário de Política Econômica

Um deputado-empresário ­puro-sangue, e rico, é protagonista de outra batalha parlamentar. Trata-se de Luiz Gastão, do PSD, ex-presidente da Federação do Comércio do Estado do Ceará. Gastão tinha patrimônio de 14 milhões de reais na eleição de 2022. Em novembro, propôs um decreto legislativo para anular uma portaria assinada na época por Marinho com limites ao trabalho dominical e aos feriados. A portaria tirava 200 atividades comerciais da lista daquelas que podem convocar os funcionários, independentemente do que digam os sindicatos, nessas ocasiões. A lista é de 2021, tempos de Bolsonaro. A iniciativa do pessedista está pronta para decisão na Câmara. Numa prévia, 301 deputados concordaram em carimbá-la de urgente e 131, não. Marinho empurrou duas vezes a vigência da lista encolhida, para tentar evitar uma derrota. Por ora, tem até junho para negociar.

Outro deputado-empresário rico encampa uma terceira batalha. Em março, o governo mandou ao Congresso uma lei para regulamentar o trabalho de motoristas de aplicativos. Em meses de negociação, os trabalhadores mostraram preferência por autonomia, para alívio do lado oposto, que não queria a CLT. Diante de sinais do Supremo de que não permitiria igualar os motoristas a celetistas, apesar da visão dominante na Justiça trabalhista a favor da equiparação, o governo propôs uma categoria nova: autônomo com direitos (a uma remuneração mínima, a contribuição previdenciária e a sindical, por exemplo). “A extrema-direita diz que a lei é um prejuí­zo aos trabalhadores, é uma disputa terrível de narrativas”, lamenta Marinho. O ministro reuniu-se a portas fechadas com um grupo de motoristas e constatou que a categoria desconhece o teor da lei e teve a opinião influenciada pelo bolsonarismo.

O Congresso viu surgir uma alternativa à proposta. Seu autor é Daniel Agrobom, do PL de Goiás. O parlamentar preside a Frente em Defesa dos Motoristas de Aplicativos, embora não seja motorista, mas dono de armazéns. Na eleição de 2022, declarou patrimônio de 9 milhões de reais. Ele e o governo chegaram a um acordo para a lei dos aplicativos ser negociada até 12 de junho. Paralelamente, Marinho retomou conversas com outro tipo de trabalhador de aplicativo: os motoboys das entregas de mercadorias. Na segunda-feira 22, dirigentes da empresa Ifood, de venda de comida, estiveram com ele. O segmento tinha participado das conversas das quais nasceu a lei dos motoristas, mas ficaram contra o acordo. O Brasil tem cerca de 1,5 milhão de trabalhadores ligados a aplicativos, conforme o IBGE, que se dividem mais ou menos assim: metade de motoristas e metade de entregadores.

E a fiscalização trabalhista, vai indispor governo e Congresso? Ela aumentou no ano passado e tende a seguir em alta até o fim do governo. No caso do combate ao trabalho infantil, 2023 registrou o maior número de crianças resgatadas (2.564) desde 2017. No combate ao trabalho análogo à escravidão, houve recorde de resgatados (3.240) desde 2014. A imensa maioria (90%) estava na zona rural. A poderosa bancada parlamentar de fazendeiros e simpatizantes vai revoltar-se? O governo conta com 1,9 mil fiscais do trabalho e, em 5 de maio, recrutará mais 900, por 22,9 mil reais mensais cada. É o maior grupo e salário do Concurso Nacional Unificado, que selecionará 6.640 funcionários para diversas áreas do serviço público federal.

Algumas categorias do funcionalismo estão em greve por reajustes, caso dos professores universitários. Os servidores não tiveram aumento com Bolsonaro (só uns poucos segmentos). No ano passado, o governo deu 9% a todas. Neste, queria elevar somente benefícios, entre eles o auxílio-alimentação. Em um café com jornalistas na terça-feira 23, Lula disse que os servidores estavam “reprimidos” e “não faziam greve há muito tempo, não tinham aumento salarial há muito tempo”, e que agora terão. E será “aquilo que a gente pode dar”.

O trabalhador brasileiro em geral quer e precisa de mais, muito mais. 

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