Folha de S. Paulo
É obsceno o prognóstico de Tarcísio de
Freitas sobre as escolas cívico-militares
Uma avalanche é feita do acúmulo de pequenas coisas, físicas ou mesmo morais, que convém esmiuçar para estimativa dos riscos. Foi assim obsceno, coisa de fazer tremer a compostura do espírito público, o prognóstico do governador paulista sobre escolas cívico-militares: daqueles alunos poderá surgir no futuro um novo Bozo. Não é, aliás, a primeira vez que se pode pensar em obscenidade como categoria aplicável a esse político. Foi como o jornal inglês "The Guardian" se referiu a uma das famigeradas motociatas em que ele, em plena pandemia, subiu na garupa presidencial.
Obscenidade, na acepção dada pela crítica
pós-modernista da cultura, não faz referência à pornocultura, mas à ausência
das mediações socialmente requeridas para a apresentação de fatos sensíveis da
vida. É a cena crua, exibida sem véus. Algo pertinente aos tempos de estupidez
sistêmica em que se rompem limites para proliferação de discursos alheios à
verdade e ao consenso. Não se consultaram famílias para saber se elas
confiariam seus filhos a uma escola que tivesse como bedel ou professor um
misógino, homofóbico, fetichista armado, expulso do exército, cujo ídolo é o
único torturador condenado pela Justiça brasileira. No entanto, o governador do
estado mais opulento da federação pode declarar, sem qualquer mediação
pedagógica ou comunitária, que a excelência educacional de jovens será aferida
pelo padrão desse mesmo indivíduo,
"Os homens querem ser enganados",
dizia Ernst Bloch (O Princípio Esperança), mas ainda havia abrigos contra a
mentira. A obscenidade, entretanto, tipifica a falência da representação
mediadora, portanto, da razoabilidade que lastreia bem ou mal as instituições.
Entrou-se no ciclo radioativo do vazio de sentido. A regra do tudo dizer nas
redes é obscena por seu anonimato. O mesmo acontece de viva voz, porém, quando
uma autoridade anuncia candidamente a pais e mães que o futuro de seus filhos
será moldado pelo binômio fascista das armas e do retrocesso ideológico.
Acrescenta-se escola ao ecossistema digital da mentira.
Obscenamente, para muito além do que supunha
a pedagogia de Émile Durkheim, equacionou-se o problema da disciplina: spray de
pimenta e algemas. É o que já ocorre em escolas
cívico-militares paulistas, agora avalizadas por lei. A
famílias às voltas com naturais dificuldades de seus adolescentes, isso pode
parecer de somenos. Mas é também matéria de avalanche moral, já pressentida.
Na mentalidade plástica do jovem, disciplina
militarizada, ainda mais sem a finalidade institucional do exército, é
manufatura de hostilidade à consciência civil e de enrijecimento humano na
mobilidade social: pedagogia para autômatos, desinteligência degenerativa. A
avalanche por vir será feita de trevas.
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