O Globo
Minimizar o risco antidemocrático é um erro
para Lula, para a oposição não bolsonarista e para as instituições
Graduada por analistas numa escala que ia do
“arriscada” ao “camicase”, a iniciativa de Emmanuel Macron de antecipar
eleições legislativas pode não ter dado o resultado imaginado por ele. É
inegável, porém, ter arrefecido o crescimento da ultradireita descrito como
motivo de “pânico” na França e na Europa.
Com seu grupo reduzido em mais de 80 cadeiras e a vitória da esquerda, levando
a um impasse político no país, há alguma ironia num cenário em que o presidente
francês deteve o extremismo, mas foi barrado pela polarização.
Seu principal recado era a reedição do “cordão sanitário” contra os radicais, efeito logrado com o alto comparecimento às urnas e com a aliança entre centro-direita e esquerda no segundo turno. Seria ingênuo descartar a profecia de Marine Le Pen sobre um mero adiamento da ascensão de seu projeto ao poder central, objetivo para o qual a suavização cosmética do discurso xenófobo é atalho. Mas a tacada de Macron tem méritos a ser observados por outros países onde se identifica esse neopopulismo como ameaça à democracia. Será que estão sendo?
As duas maiores democracias do outro lado do
Atlântico sofreram recentes tentativas de golpes de Estado, o que não houve na
França. A eleição americana foi marcada até sábado pela insistência de Joe Biden na
reeleição, apesar das demonstrações de não ter condições para novo mandato.
Desprendimento e altruísmo são, por definição, virtudes complexas (ou fáceis
demais) de cobrar do outro, e é verdade que o all in de Macron não exigiu o
sacrifício que Biden é pressionado a fazer. Nem o presidente dos Estados
Unidos, contudo, tem o poder de escolher as próprias circunstâncias,
e a eventual derrota será vista como resultado direto da relutância em
desistir.
Para dificultar, o atentado contra Trump tem
potencial de atingir a imagem-discurso de Biden. Sua principal plataforma é ser
o que o rival não é: um político normal, não radical. Seria difícil para o
republicano elaborar um argumento tão forte contra as acusações de extremismo
quanto ter sido, ele próprio, a vítima do ato mais extremo ocorrido na
campanha.
No Brasil, onde a distância para as eleições
pode reduzir a sensação de gravidade, minimizar o risco antidemocrático é um
erro para Lula,
para a oposição não bolsonarista e para as instituições. O STF tem
obrigação de não transigir na responsabilização do golpismo. E deveria se
preocupar em não alimentar a chama antissistema indo a eventos como fóruns
internacionais onde é difícil explicar a relação pouco litúrgica com setores
interessados em suas decisões.
A esquerda torce o nariz para análises
segundo as quais a eleição de Lula foi garantida pela frente ampla do segundo
turno, uma vez que os candidatos mais ao centro haviam tido poucos votos. Pode
ser, mas convém não superestimar a pequena margem da vitória em 2022.
— Quem está na Presidência só perde eleição
se for incompetente — disse Lula em junho, num não raro rompante de
autossuficiência.
Em 2026, não deve haver Bolsonaro, mas também
estará distante a pandemia e sua trágica condução pela extrema direita
brasileira, esta sim fator decisivo para a volta do petista ao Planalto.
Na outra mão, a direita tradicional não
poderá, por óbvio, ser condenada a aderir de antemão ao candidato da situação
apenas porque a polarização está cristalizada entre Lula e Bolsonaro. Mas será
irresponsável se o ponto de partida na busca de um opositor não for o
compromisso real com a democracia. Boa parte dos políticos já embarcou no
oportunismo atrás dos votos bolsonaristas nas eleições municipais.
Em meio a tudo isso, na França, nos Estados
Unidos e no Brasil, há um detalhe inconveniente da realidade: a expressiva
popularidade do radicalismo. A defesa da democracia tem baixa adesão na
sociedade. A corrente reedição de um “dilema Tostines” — o extremismo tem muito
voto porque foi normalizado ou foi normalizado porque tem muito voto? —
alimenta debates, mas a chave pode estar mais em como proceder para
“desnormalizá-lo”.
*Miguel Caballero é editor do impresso do GLOBO
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