Escolha de Vance revela metamorfose entre republicanos
O Globo
Indicado como vice na chapa de Trump
simboliza avanço da ala isolacionista e protecionista do partido
A escolha do senador por Ohio J.D. Vance como
candidato a vice na chapa de Donald
Trump à Presidência dos Estados Unidos é um sinal de como o
Partido Republicano foi transformado pelo trumpismo. O favoritismo da
candidatura Trump/Vance nas eleições de novembro permite antever um país não
apenas mais conservador nos costumes, mas também mais isolacionista na
geopolítica, mais protecionista no comércio exterior e mais intervencionista na
economia interna, com consequências profundas para o mundo todo.
Vance se projetou com um livro de memórias publicado em 2016, antes da eleição de Trump, descrevendo as agruras de sua infância pobre no Meio-Oeste, numa cidade afetada pelo declínio da siderurgia, onde foi criado por uma mãe viciada em drogas, às voltas com uma família esfacelada e episódios corriqueiros de violência doméstica. A obra foi considerada uma das melhores explicações da transformação da mentalidade de eleitores majoritariamente brancos e pobres que, antes identificados com os democratas, votaram em Trump naquele ano.
Pelas características singulares do sistema
eleitoral americano, a eleição de novembro também será decidida por estados do
Meio-Oeste — sobretudo Pensilvânia, Michigan e Wisconsin —, e a escolha de um
representante da região por Trump é um aceno claro à população que, em 2020,
voltou a preferir o democrata Joe Biden.
Na economia, Vance integra uma ala recente
dos republicanos cujas ideias contrastam com as políticas defendidas pelo
partido nas últimas décadas, associadas ao livre mercado, a cortes de impostos
e às grandes corporações. No Senado, aliou-se aos democratas em projetos de
regulação da indústria ferroviária e das gigantes digitais do Vale do Silício,
além de ter apoiado medidas para conter salários de altos executivos dos bancos
e o preço da insulina. Adota posições nacionalistas e protecionistas em defesa
da indústria local, de modo coerente com sua própria história no Meio-Oeste.
Como a maioria dos republicanos, subscreveu declaração contra aumento de
impostos e, na pauta de costumes, é um conservador tradicional que já defendeu
a proibição nacional do aborto depois da 15ª semana de gravidez, embora depois
tenha moderado sua posição (só o aceita em caso de risco de vida para a mãe,
mas diz que a decisão deve ficar a cargo dos estados).
Antes crítico de Trump, Vance se tornou nos
últimos anos um de seus defensores mais loquazes. Afirmou que, se estivesse na
Vice-Presidência no dia dos ataques ao Capitólio, não teria referendado o
resultado das urnas, como fez o então vice, Mike Pence. A adesão a teorias
conspiratórias sobre a votação, os ataques a Biden e a virulência de seu
discurso populista fazem de Vance uma estrela do trumpismo.
Além da economia, é na geopolítica que a
escolha marca a maior inflexão entre republicanos. Vance desconfia do papel
global dos Estados Unidos na defesa da democracia, é contra a ajuda à Ucrânia e
foi a uma conferência em Munique criticar o governo ucraniano, em contraste com
a posição oficial americana. “Não me importo com o que acontece na Ucrânia”,
afirmou.
Na convenção em Milwaukee, Vance foi aclamado
efusivamente. Ele é o maior símbolo de que, num novo governo Trump,
protecionismo e isolacionismo estarão de volta. E de que o Partido Republicano
não é mais o mesmo de Ronald Reagan ou George W. Bush.
Nova licitação para rodovia Rio-Juiz de Fora
é boa notícia para usuários
O Globo
Leilão previsto para dezembro encerra
impasse criado pela gestão deficiente da atual concessionária
É acertada a decisão do governo federal de
promover nova licitação para administrar a BR-040 no trecho entre Rio de
Janeiro e Juiz de Fora. A gestão da rodovia, que integra a ligação entre a
capital fluminense, Belo Horizonte e Brasília,
tem sido afetada pelos impasses entre o Ministério dos Transportes e a
concessionária Concer, impedindo que obras importantes avancem. O novo leilão
está previsto para dezembro.
A continuação desse imbróglio só prejudicaria
os usuários de uma das mais importantes rodovias do país. As obras da Nova
Subida da Serra, que visam a corrigir o traçado obsoleto da pista, foram
iniciadas em 2013 e paralisadas em 2016, quando já deveriam estar concluídas.
São serviços complexos, que incluem túneis, viadutos e duplicação de pistas na
Serra de Petrópolis. Foi executado cerca de 50% do planejado. Inaugurado nos
anos 1920, o trecho de cerca de 20 quilômetros sofre com falta de acostamento,
deslizamentos de terra e queda de carretas.
A retomada das obras é o principal
investimento previsto, mas, mesmo no melhor cenário, é improvável que sejam
concluídas logo. O secretário executivo do Ministério dos Transportes, George
Santoro, prevê que, se o contrato for assinado em 2025, elas terão de começar
em 2028 e terminar em 2031. A prorrogação do contrato as aceleraria, mas não há
perspectivas de superar o impasse e as batalhas na Justiça. O Tribunal de
Contas da União (TCU) vetou a renegociação do atual contrato. Nas palavras do
ministro Walton Alencar Rodrigues, do TCU, o trecho administrado pela Concer “é
a pior concessão rodoviária do país, a mais cara, a menos eficaz, aquela em que
menos se realizaram as obras contratadas e a que mais insatisfação gerou aos
usuários”.
No modelo planejado, o Ministério dos
Transportes propõe que a União assuma a maior parte dos riscos de engenharia
das obras na Serra. Na avaliação do governo, isso tornaria a concessão mais
atraente. A ideia é que a nova concessionária invista R$ 4,95 bilhões ao longo
do contrato e R$ 3,17 bilhões em desembolsos pela operação.
É fundamental que a empresa escolhida para
administrar a rodovia por 30 anos tenha capacidade de conservá-la adequadamente
e de realizar obras e serviços previstos nos prazos estipulados. E que a tarifa
cobrada nas três praças de pedágio seja compatível com as obrigações
contratuais, de modo a manter um equilíbrio entre as demandas dos usuários e da
concessionária (vencerá a licitação quem oferecer a menor tarifa).
É boa ideia que a nova concessão abra espaço
a melhorias como faixas marginais, passarelas, retornos, passagens de animais,
paradas de ônibus e pontos de descanso para caminhoneiros. No entanto não
adiantará agir de forma demagógica e estabelecer valores que agradem aos
motoristas mas não cubram os custos da concessão. Será um pretexto para que
obras complexas mais uma vez não sejam feitas. É preciso analisar os erros da
concessão atual para não repeti-los.
Para FMI, inflação poderá exigir juro alto
ainda por muito tempo
Valor Econômico
Possibilidade de juros ainda altos por um bom tempo com valorização do dólar não é favorável ao Brasil nem aos emergentes
A inflação continua pregando peças nos bancos
centrais desenvolvidos e declinará bem mais lentamente do que se previa,
adverte o Fundo Monetário Internacional (FMI), que atualizou ontem suas
projeções para o crescimento da economia mundial. Ainda que os riscos para a
economia estejam equilibrados, o lento processo de desinflação poderá levar os
BCs a manter uma taxa de juros mais elevada por muito mais tempo do que se
estima. Isso não significa que os juros não cairão, mas que a magnitude da
redução poderá ser menor que a esperada. Esse é um fator negativo, ao lado dos
déficits fiscais, que estão muito altos, e das investidas protecionistas de
grande parte das economias, relacionadas à disputa entre Estados Unidos e
China.
As previsões de crescimento quase não
mudaram. A economia mundial crescerá 3,2% este ano e 3,3% em 2025 (0,1 ponto a
mais que o estimado em abril), da mesma forma que o PIB dos países avançados
(1,7% e 1,8% respectivamente) e dos emergentes (4,3% em ambos os anos). O
Brasil avançará 2,1% em 2024, mas a expectativa de expansão subiu 0,3 ponto
para o ano que vem, atingindo 2.4%. O ritmo atingirá 2,9% no último trimestre
deste ano em relação ao último de 2023.
O FMI avaliou fatores que podem tornar a rota
da economia mais acidentada daqui para a frente. A resistência da inflação é o
mais importante deles. Se o Federal Reserve mantiver os juros mais elevados por
muito tempo, o dólar será pressionado, colocando as políticas antinflacionárias
e cambiais dos países emergentes sob estresse. “A boa notícia”, escreve o
economista-chefe do FMI, Pierre-Olivier Gourinchas, “é que os choques sobre os
índices cheios de inflação arrefeceram e a inflação diminuiu sem recessão”. A
notícia ruim, para ele, é que “a inflação de energia e alimentos retrocedeu
quase ao nível observado antes da pandemia em muitos países, mas a inflação
geral, não”.
Há mais fatores de inquietação nessa equação.
Segundo Gourinchas, após a pandemia, se olhados relativamente, os preços dos
bens ficaram mais caros que o dos serviços, com o aumento da demanda e
restrição na oferta. Agora, os preços dos serviços e o aumento dos salários
dominam as pressões - as remunerações também voltaram ao nível de antes da
covid-19 em muitos países. Se os preços dos bens não caírem mais, a inflação
permanecerá mais alta que o desejado, segundo ele, mesmo que nenhum choque
adicional ocorra nas economias. “Esse é um risco significativo para o cenário
de pouso suave”, adverte.
Além disso, o hiato do produto - a distância
positiva ou negativa da economia ante seu crescimento potencial - está se
fechando nos países desenvolvidos, um fator a mais para dificultar o
relaxamento dos preços.
Um segundo risco importante para o FMI é que
os déficits fiscais estão muito altos e as “consolidações esperadas são
largamente insuficientes em muitos países”. Um exemplo preocupante é o dos
Estados Unidos, onde mesmo com pleno emprego a política fiscal segue
expansionista, empurrando para cima a relação dívida/PIB e trazendo riscos para
o país e para a economia global. Também não é um bom sinal a dependência do
Tesouro americano do financiamento de curto prazo para a dívida.
Déficits altos encontram um mundo
politicamente conturbado, uma conjunção potencialmente danosa. Há chances,
segundo Gourinchas, de que guinadas na política econômica em decorrência de
resultados eleitorais (que ele não especifica quais seriam) possam causar
efeitos negativos para o resto do mundo e aumentem as incertezas sobre o
cenário base com o qual o Fundo trabalha. O risco das eleições é que tragam
maior frouxidão fiscal, afetando os juros de longo prazo e aumento do
protecionismo.
O protecionismo é outro elemento importante
política e economicamente. Gourinchas aponta que, com o “gradual
desmantelamento do sistema multilateral de comércio” mais países agora impõem
tarifas unilaterais ou políticas industriais próprias, com aceitação mais do
que questionável pelas regras da Organização Mundial do Comércio. As
consequências são distorção de alocação de recursos e comércio, retaliações por
parte dos países atingidos, queda dos padrões de vida e muito mais dificuldades
para coordenar o enfrentamento de desafios globais, como a transição climática.
A possibilidade de juros ainda altos por um bom tempo com valorização do dólar não é favorável ao Brasil nem aos emergentes. Juros americanos colocam um teto à queda dos juros domésticos no Brasil, enquanto que o dólar forte tem o mesmo efeito indireto, ao aumentar os preços dos bens comercializáveis e pressionar a inflação. Ainda assim, a economia poderá crescer a um ritmo moderado, com inflação relativamente controlada, o que dá um tempo precioso para que o governo abandone suas hesitações e tome as medidas necessárias, como cortes de gastos, para que consiga cumprir as metas fiscais que ele propôs em seu regime fiscal.
Ideologia de Lula atrasa melhora no
saneamento
Folha de S. Paulo
Mantido o investimento anual recente,
universalização só chegaria em 2070; é preciso facilitar participação privada
Pesquisa do Instituto Trata Brasil em
parceria com a consultoria GO Associados, publicada nesta Folha, mostra
que o Brasil corre o risco de protelar por quase 40 anos os benefícios
previstos no marco legal do saneamento básico.
A lei, que completou quatro anos na
segunda-feira (15), prevê que 99% da população deve ter acesso a abastecimento
de água e 90% a esgotamento sanitário até 2033. Entretanto, o levantamento
identificou que, se mantido o atual ritmo de investimentos, a universalização
desse direito básico só será alcançada em 2070.
As metas foram estabelecidas a partir da
projeção de que o diploma, ao criar condições regulatórias para privatizações,
concessões e parcerias público-privadas, daria inicio a um ciclo de
modernização do setor, até então tratado com desmazelo pelos governos.
Por uma nefasta tradição, gerações de
políticos brasileiros seguiram a máxima de que obra enterrada não dá voto, mas
manter estatais ineficientes perpetua poder.
O PT votou contra a lei, alegando que a iniciativa privada elevaria tarifas e penalizaria os pobres.
Ao chegar ao Palácio do Planalto, o governo do petista Luiz Inácio Lula da
Silva tentou voltar atrás na diretriz do marco. Dois decretos presidenciais, mesmo
após as edições solicitadas pelo Congresso, flexibilizaram algumas
regras e criaram mecanismos para preservar estatais ineficientes.
As regiões
mais prejudicadas são Norte e Nordeste, onde empresas públicas mal
preparadas, algumas falimentares, ganharam sobrevida. O governo, num contraste
entre discurso e prática, prejudica o cidadão das áreas mais vulneráveis, que
se mantém dependente de repasses de verbas estaduais e federais para obras
públicas de saneamento. Como era esperado, dada a restrição fiscal e a
morosidade da máquina pública, a velocidade e o montante das liberações já
foram identificados como insuficientes.
O mesmo estudo constatou que, até 2033, o
Estado deve desembolsar R$ 46,3 bilhões anualmente. Só assim
atingiria os R$ 509 bilhões necessários para a universalização. Isso é mais que
o dobro da média de R$ 20,9 bilhões destinada por ano a esse serviço entre 2018
e 2022.
Nem a ajuda dos bancos públicos conseguiu
preencher a lacuna. Segundo artigo publicado em março na revista Conjuntura
Econômica da Fundação Getulio Vargas (FGV), o BNDES ampliou
financiamentos para o setor, chegando ao recorde de R$ 22,4 bilhões em 2023,
mas o valor ainda é insuficiente.
Se o governo quer de fato universalizar o
saneamento no prazo, necessita da parceria com o setor privado. Deve, portanto,
abandonar ideologias retrógradas e resgatar os princípios do marco.
Morosidade com o racismo
Folha de S. Paulo
Denúncias contra o crime dão salto entre 2020
e 2023, mas Justiça ainda é lenta
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de presente. Qualquer pessoa que não é assinante poderá ler.
Se ainda persistem dúvidas de que as
desigualdades raciais perduram no Brasil, dados do Judiciário são capazes de
mostrar o caráter endêmico do preconceito.
As denúncias de insultos enquadrados na lei
penal como injúria racial saltaram 610% no país, na comparação entre 2020 e
2023. No período, o
número aumentou de 675 ações para 4.798, segundo dados do Conselho
Nacional de Justiça.
Por trás do dado absoluto restam duas
nuances. A primeira é regional. A alta é impulsionada, em especial, pelo estado
com maior população negra do país, a Bahia, onde 22,4% se declaram pretos e
57,3%, pardos.Oito em cada dez novos casos foram registrados na unidade
federativa (4.049 só em 2023).
A maior proporção baiana não é explicada
somente pelo elevado percentual de negros no estado. Parte disso decorre da
existência de órgãos pioneiros de recebimento e processamento de denúncias de
injúria racial e de promoção do combate ao racismo.
Em outros estados, como São Paulo, há também delegacias especializadas em
crimes raciais.
Outra nuance, mais relevante, é temporal. O
Judiciário brasileiro, moroso apesar de caro, não tem sido capaz de processar
os casos de injúria racial em tempo adequado. Dos quase 9.000 processos
protocolados desde 2020, 6.786 seguem pendentes —77% deles na Bahia.
Como se vê, não bastam leis e campanhas de
conscientização, se os tribunais não forem ágeis o suficiente para dar uma
resposta jurídica às denúncias.
Nem tudo são más notícias. De 2020 a 2023, o
tempo médio de processamento caiu o equivalente a quatro meses, de 628 dias em
2020 para 502 dias em 2023, embora ainda demande mais de um ano.
O Supremo Tribunal Federal decidiu em 2021
que a
injúria racial contra um indivíduo é equiparada ao crime de racismo,
este dirigido a uma coletividade. Hoje, ambos são inafiançáveis, como tentativa
de combater a impunidade.
Tão persistente quanto o racismo, no entanto,
é o atraso das cortes em combater, com a seriedade e rapidez que o crime
merece, ofensas que não têm lugar em uma democracia plural como a brasileira.
Patrimonialista convicto
O Estado de S. Paulo
É espantosa a naturalidade com que Jair
Bolsonaro mobilizou órgãos públicos para livrar seu primogênito, Flávio, do
alcance da Justiça. O ex-presidente agiu como se fosse dono do Estado
É espantosa a naturalidade com que o então
presidente Jair Bolsonaro autorizou, em 25 de agosto de 2020, a mobilização de
órgãos públicos – em particular, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), a
Receita Federal e a Dataprev – para que um de seus interesses privados mais
candentes fosse atendido: livrar seu primogênito, o senador Flávio Bolsonaro
(PL-RJ), do alcance da Justiça. O chamado “Zero Um”, como se sabe, é suspeito,
entre outros malfeitos, de ter enriquecido ilicitamente com o esquema das “rachadinhas”
quando ainda era deputado na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de
Janeiro.
Na segunda-feira passada, o ministro do
Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes retirou o sigilo da íntegra
da gravação daquela conversa, feita pelo então diretor da Abin, o hoje deputado
federal Alexandre Ramagem. Só a defesa de Bolsonaro havia solicitado acesso ao
material. Mas, temendo que uma divulgação parcial ou até mesmo uma manipulação
do áudio pudesse comprometer a devida compreensão do que havia sido discutido a
portas fechadas, o ministro, em boa hora, decidiu garantir o acesso geral ao
áudio e à sua transcrição, sem o que, nas palavras de Moraes, poderia haver
“prejuízo à correta informação à sociedade”.
Os arquivos são claros. Todos os cidadãos
puderam ler com seus próprios olhos e ouvir com seus próprios ouvidos o teor
daquela conversa absolutamente antirrepublicana, para dizer o mínimo. Na
presença de Ramagem, do então chefe do Gabinete de Segurança Institucional
(GSI), general Augusto Heleno, de Flávio e de duas advogadas do senador – um
ambiente restrito e supostamente controlado, o que chega a ser irônico –,
Bolsonaro se sentiu à vontade para dar vazão ao seu vezo patrimonialista, como
se o fato de ter sido eleito presidente da República o autorizasse a agir como
se fosse o dono do Estado brasileiro.
A julgar pelo conteúdo revelado da conversa,
tamanha é a distorção de seu papel como chefe de Estado e de governo, além da
própria ideia que Bolsonaro faz do Estado, que o então presidente nem sequer
parece ter se dado conta de que potencialmente estava cometendo uma plêiade de
crimes naquela ocasião. “É o caso de conversar com o chefe da Receita. O (José)
Tostes”, orientou Bolsonaro às advogadas do filho, como se “conversar” com um
servidor público a fim de levá-lo a agir no atendimento de interesses privados
do mandatário fosse a coisa mais natural do mundo.
A gravação tornada pública revela de forma
inequívoca tanto o desdém de Bolsonaro pelas obrigações que o alto cargo que
ele ocupava lhe impunha como sua plena ciência de que o teor daquela conversa
era possivelmente ilegal. Durante quase 1h10 de gravação, não foram poucos os
momentos em que Bolsonaro tentou fazer parecer que não estava fazendo
exatamente o que, de fato, fazia: mobilizar órgãos públicos como uma extensão
da equipe de defesa jurídica de seu filho mais velho. “Ninguém está pedindo
favor aqui”, “não estamos procurando favorecimento de ninguém”, disse o então
presidente, enfatizando que “a gente nunca sabe se alguém está gravando alguma
coisa”.
A desfaçatez é de estarrecer até os que estão
minimamente familiarizados com o padrão de imoralidade do bolsonarismo. Não se
pode perder de vista que o que estava sendo articulado na sala do presidente da
República era um ataque à reputação dos servidores da Receita Federal
responsáveis pelo relatório de inteligência financeira que evidenciou
“movimentações atípicas” nas contas bancárias de Flávio Bolsonaro e do notório
Fabrício Queiroz, espécie de faz-tudo do clã. Ademais, naquele horário,
Bolsonaro deveria estar dedicado ao trabalho como chefe de governo, lembrando
que, à época, a população brasileira estava angustiada pelas mortes causadas
pela pandemia de covid-19.
As explicações dos implicados após a
divulgação do teor da conversa seriam risíveis se não revelassem deboche e
insulto à inteligência alheia. Espera-se que a PF leve a cabo essa investigação
e que todas as responsabilidades sejam devidamente apuradas – tanto as de quem
solicitou favores ilícitos como as de quem, eventualmente, os atendeu.
A ‘normalidade’ de Lula na Venezuela
O Estado de S. Paulo
Presidente cobra que resultado de eleição
presidencial venezuelana seja reconhecido por todos, mas ignora que é muito
difícil haver eleições livres e justas sob o tacão de uma ditadura
No dia 9 passado, o presidente Lula da Silva
afirmou fazer “votos” para que a eleição presidencial na Venezuela, no próximo
dia 28, seja realizada “de forma tranquila” e que “o resultado seja reconhecido
por todos”.
Não fosse Lula quem é, um defensor convicto
da ditadura de Nicolás Maduro, poder-se-ia dizer que ali falava um estadista
empenhado em convocar os cidadãos do conturbado país vizinho a exercerem seu
direito de voto de maneira consciente e pacífica e a aceitarem o resultado como
legítima expressão da vontade popular.
Sendo Lula quem é, no entanto, seus “votos”
derivam de uma evidente falácia: partem do princípio de que as eleições na
Venezuela serão livres e justas, e por essa razão seus resultados devem ser
aceitos “por todos”, quando até a espada de Bolívar sabe que a ditadura de
Maduro, seguindo o padrão habitual, está fazendo de tudo para minar as chances
da oposição.
Na Venezuela, com seus inúmeros presos
políticos, sem imprensa livre e sem Judiciário independente, é muito improvável
que a oposição vença, razão pela qual, mantidas as atuais condições
absolutamente antidemocráticas, o vencedor para o qual Lula reclama
antecipadamente o reconhecimento deverá ser o companheiro Maduro. Tudo muito
conveniente para o lulopetismo, que agride a história e a inteligência ao
sugerir que a Venezuela voltará à “normalidade” (termo usado por Lula), na
prática, se a oposição reconhecer a vitória de Maduro como legítima.
Lula disse que gostaria de ver a Venezuela
voltar “muito rapidamente” ao Mercosul, do qual foi suspensa justamente por
violar as cláusulas democráticas do bloco. Ora, a simples realização de uma
eleição – que nem livre é – não será capaz de mudar o fato de que o regime
venezuelano corroeu as instituições, estruturou-se na corrupção e, ao violar os
direitos humanos, solapou a vida a tal ponto que para milhões de cidadãos não
restou alternativa a não ser a fuga em massa. Foram essas as razões da
suspensão da Venezuela do Mercosul, e o bloco não pode aceitar o país de volta
sem que os direitos dos cidadãos venezuelanos sejam integralmente
restabelecidos.
Com a vasta experiência político-eleitoral
que possui, Lula sabe muito bem como se dá um processo democrático justo. Nada
do que ocorre hoje na Venezuela, e vem ocorrendo há anos, contém qualquer
vestígio de democracia.
Nas últimas semanas, Maduro tem intensificado
o cerco a eleitores potenciais da oposição, ao reduzir o prazo de registro de
novos eleitores e ao exigir passaporte vigente e residência permanente de quem
está no exterior na condição de refugiado ou que está à espera de asilo e que
gostaria de votar. De 3,5 milhões a 5,5 milhões de venezuelanos – 25% dos
eleitores – enfrentam barreiras para votar fora do país e apenas 69 mil
conseguiram se habilitar.
Além disso, observadores eleitorais da União
Europeia foram barrados. Do Brasil, foram convidadas entidades fiéis ao regime
chavista, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e o Centro
Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz(Cebrapaz), além de
brasileiros integrantes da Assembleia Internacional dos Povos e da Aliança
Bolivariana Pelos Povos da Nossa América (Alba Movimentos).
É com base nessa farsa que Lula quer o
reconhecimento por todos do resultado de um pleito no qual os detentores do
poder articulam subterfúgios dos mais variados com a única finalidade de
declarar a vitória de Maduro. Entende-se a aflição do chavismo e de seus
simpatizantes no Brasil: pesquisas independentes mostram folgada liderança do
candidato da oposição, o septuagenário Edmundo González, o único aceito pelo
regime de Maduro depois de invalidar a candidatura da popular opositora María
Corina Machado. A poucos dias do pleito, fosse uma campanha eleitoral normal,
seria improvável uma virada de Maduro. Sendo a Venezuela o que é, a vitória da
oposição depende exclusivamente dos cálculos de Maduro: se esse triunfo não
desatar um processo de revanchismo, há uma remota possibilidade de que o
ditador decida que chegou a hora de deixar o poder. E isso, ao contrário do que
Lula quer fazer parecer, nada tem a ver com democracia.
Sujeitos de sorte
O Estado de S. Paulo
Decisões do governo, por coincidência,
favorecem todos os negócios dos irmãos Batista no setor elétrico
A Âmbar Energia, empresa que integra o Grupo
J&F, apresentou à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) uma proposta
para assumir o controle da Amazonas Energia, distribuidora que estava à beira
da falência. Os irmãos Batista, por óbvio, não rasgam dinheiro e, se
autorizados, farão a aquisição por valor “simbólico”.
O plano foi apresentado no dia 28 de junho,
duas semanas após o governo editar uma medida provisória (MP) para socorrer a
Amazonas Energia. Como quase toda MP envolvendo a área de energia, o texto é
incompreensível para leigos, mas cristalino para quem acompanha as pendengas do
setor elétrico.
Como num passe de mágica, a MP transformou um
mico em um negócio da China. O texto criou condições para que um novo operador
assumisse os serviços prestados pela Amazonas Energia e realizasse os
investimentos necessários para não deixar o Estado às escuras. Enquanto isso, o
novo operador contará com flexibilizações contratuais, sem as quais seria
“improvável” resolver os problemas da concessão no curto prazo, segundo a
Exposição de Motivos da MP.
Não haveria, a priori, nada de estranho
no negócio, não fossem os inúmeros acasos envolvendo a atuação da Âmbar Energia
junto ao governo. Representantes dos irmãos Batista estiveram ao menos 17 vezes
no Ministério de Minas e Energia entre junho de 2023 e maio deste ano, nenhuma
delas registrada na agenda, como revelou o Estadão.
É verdade que a Âmbar tem muitos outros
assuntos a tratar com o governo, entre os quais o polêmico acordo sobre o
leilão emergencial realizado em 2021, rejeitado pela área técnica do Tribunal
de Contas da União (TCU) por não haver benefício comprovado nem à União nem aos
consumidores. Mas o fato é que a última dessas reuniões ocorreu duas semanas
antes da publicação da MP.
Na mesma semana em que a MP saiu, a Âmbar
Energia havia anunciado outro negócio no mínimo controverso: a compra de
termoelétricas da Eletrobras, usinas essas que têm como único cliente a
Amazonas Energia, que não paga um tostão pela energia produzida pelos
empreendimentos desde novembro do ano passado e já acumula uma dívida de R$ 10
bilhões. Mera coincidência, nas palavras do ministro Alexandre Silveira.
Seria uma operação com prejuízo líquido e
certo para a J&F, não fossem os termos da mesma medida provisória. A MP
estipulou que os contratos de energia dessas usinas, no futuro, não terão mais
de ser honrados pela Amazonas Energia, mas pelos consumidores de todo o País,
por meio da conta de luz.
Como se fosse capaz de antever o futuro que
se avizinhava, a MP previu soluções variadas para a dívida bilionária da
distribuidora com a Eletrobras, mas que dependiam de uma condição específica:
que a mesma empresa que comprasse as termoelétricas adquirisse, também, a
Amazonas Energia.
E não é que foi exatamente isso que ocorreu?
A Âmbar se interessou tanto pelas usinas quanto pela distribuidora. Quem aponta
todos esses indícios o faz com base em “especulações de mercado”, segundo
Silveira, ecoando “choro de perdedor”. Os irmãos Batista, aparentemente, são
sujeitos de muita sorte.
Países são mais importantes do que os seus
presidentes
Correio Braziliense
Um inimaginável rompimento entre Brasil e
Argentina traria prejuízo para os dois países e para toda a região, além de
minar possibilidades futuras
Declarações bombásticas e polêmicas comovem
corações e mentes, mas não servem para os negócios. O presidente Luiz Inácio
Lula da Silva e o governo brasileiro agem de forma extremamente correta ao
relevar as agressões verbais gratuitas proferidas pelo presidente da Argentina,
Javier Milei, contra o colega brasileiro. Milei fala para os seus eleitores
radicais pouco se importando com o impacto desses atos em relação ao restante
do mundo, como que querendo isolar a Argentina em uma ilha da fantasia. Governos
passam, Estados e empresas permanecem e é assim que o embaixador brasileiro na
Argentina, Julio Biteli, se posicionou ao deixar o Palácio do Planalto ontem.
Ele foi chamado exatamente para esclarecer as relações do Brasil com a
Argentina, que são de longe mais importantes do que polêmicas envolvendo os
presidentes dos dois países.
A Argentina é um dos principais parceiros
comerciais do Brasil, juntamente com a China, os Estados Unidos e os Países
Baixos, e integra o Mercado Comum do Cone Sul (Mercosul), criado há 33 anos e
que sobreviveu a governos de ideologias variadas. A Argentina é o maior
parceiro comercial do Brasil dentro do Mercosul e, em função de uma política
econômica restritiva e com impacto sobre o consumo, são os argentinos que hoje
mais se beneficiam dessa parceria, com o Brasil sendo um dos principais
destinos para produtos argentinos.
No primeiro semestre deste ano, as
exportações brasileiras para a Argentina somaram US$ 5,88 bilhões, com queda de
37,6% em valor e de 27,7% em volume em relação aos seis primeiros meses do ano
passado, enquanto as importações do Brasil do país vizinho somaram US$ 6
bilhões, com aumento de 2,4% sobre os US$ 5,93 bilhões importados no primeiro
semestre de 2023. Para se ter ideia do impacto da relação do Brasil com a
Argentina, as importações representam 67,6% de tudo o que o Brasil comprou dos
países do Mercosul de janeiro a junho deste ano, enquanto nas exportações o
Brasil vendeu para esse vizinho 66,1% de tudo que destinou para os membros do
bloco econômico.
A orientação dada pelo governo para a
Embaixada em Buenos Aires desde dezembro do ano passado é preservar a relação
econômica entre os dois países. A parceria é estratégica e deve ser vista com
base no exemplo do Reino Unido, que depois de deixar a União Europeia agora
busca uma reaproximação com o bloco europeu. Um inimaginável rompimento entre
Brasil e Argentina traria prejuízo para os dois países e para toda a região,
além de minar possibilidades futuras, como a conclusão do acordo Mercosul e
União Europeia, celebrado em junho de 2019, após 20 anos de negociações, e que
até hoje não saiu do papel.
O Brasil tem visto as atitudes de Milei como
"provocações" e adotado uma postura pragmática, uma vez que a
diplomacia argentina mantém conversações com a brasileira sem que haja
interrupções, inclusive com missões empresariais sendo realizadas e previstas
entre as duas nações. A avaliação correta do governo brasileiro é de que a
retração nas vendas para a Argentina é circunstancial e que, mesmo em crise, o
país oferece oportunidades de negócios para as empresas brasileiras. Esse é o
interesse que efetivamente deve ser defendido, para manter mercados para
produtos brasileiros, que geram emprego e renda no país.
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