Folha de S. Paulo
Não se trata apenas do voto de nichos
radicais, mas de metade do eleitorado
Há um dogma que circula em ambientes
progressistas: "Não normalizarás a ultradireita".
É um dogma porque, aparentemente, proíbe-se até mesmo discutir a utilidade,
conveniência ou razão dessa crença. Está na mesma categoria de "não existe
ultradireita moderada" e "com fascista não tem conversa, só
combate".
Compreendo o que está em jogo. A direita
radical que emergiu a partir de 2016 é perturbadora para uma cultura
liberal-democrata, herdeira do Iluminismo.
Mesmo com suas variações internas, há nela um bom número de teses e atitudes
obscurantistas, intolerantes, avessas ao pluralismo e perigosas para minorias
políticas.
Vetar a normalização dessas posições é uma
tentativa de manter ativa a indignação moral, preservando o sentimento de
repulsa e a convicção de que estamos diante de posições odiosas e aberrantes.
Como sou antidogmático por natureza, sugiro reexaminar se essa interdição ainda faz sentido. Em 2016 e 2018, quando Trump e Bolsonaro venceram eleições nas maiores democracias americanas, a surpresa era justificada.
Estávamos desprevenidos, aquilo não fazia
sentido e não parecia condizente com o padrão civilizatório. É um pesadelo que
vai passar, dizíamos. Mas não passou.
Mesmo perdendo por pouco as eleições
presidenciais seguintes, o trumpismo parece mais triunfante que nunca, e o
bolsonarismo não dá sinais de desaparecer. Orbán, Milei, Meloni, Le Pen,
Wilders, Netanyahu,
Bukele, o Vox, a AfD, o Chega são exemplos de que a direita radical vive sua
primavera nas Américas e na Europa. Está em franca expansão e, mesmo quando
eventualmente derrotada, mantém-se como uma força política significativa.
Menos de uma década após seu surgimento, a
nova ultradireita é hoje considerada uma alternativa normal e desejada por
milhões de eleitores ao redor do mundo.
Não se trata apenas do voto de nichos de
radicais xenófobos, fundamentalistas, racistas ou misóginos, mas de metade do
eleitorado do Brasil ou dos Estados Unidos, e de percentuais altíssimos de
cadeiras nos parlamentos europeus, quando não da maioria delas. Não há noção de
"nicho" que comporte tanta gente.
Cresce ou ganha em países grandes e pequenos,
em jovens ou em consolidadas democracias, arrebata o voto dos jovens, é nativa
digital, inova em métodos e discursos e, o que é mais inquietante, parece muito
consciente de que é tudo parte de um mesmo projeto mundial. Não há como estar
mais "normalizado" do que isso.
Pode-se argumentar que legitimidade é outra
questão, mas isso é uma objeção fraca. Se o voto é o meio consagrado pelas
democracias para legitimar pretensões políticas, e como votos livres e limpos
não faltam para essas posições, parece-me irrealista e arrogante imaginar que
os eleitores não as considerem democraticamente legítimas.
A ultradireita não foi legitimada por
colunistas, intelectuais, jornalistas ou cientistas políticos, mas pelos
eleitores de grandes democracias. Em 2024, seria tolo ignorar esse fato.
"Ora", objetam, "na
democracia, voto não é tudo". Concordo, embora lembre que na democracia
governam as maiorias e que o voto é o método para estabelecê-las.
Embora votos não sejam capazes de impedir que
os eleitos tentem perpetuar-se no poder ou tentem desmontar as instituições
democráticas uma vez empossados, votos continuam sendo as condições
preliminares de legitimidade republicana.
Os votos de 1932 não autorizaram Hitler a
desmantelar o parlamento alemão como instituição democrática, nem os de 2018
deram a Bolsonaro o direito a um golpe de Estado, mas abusar da legitimidade
obtida não significa que o meio de legitimidade possa ser desconsiderado.
Aceitar o fato empírico e eleitoral de que a
ultradireita se tornou uma posição natural para grande parte dos eleitores do
mundo não impede ninguém de considerar inaceitáveis certas premissas que ela
sustenta ou as atitudes que assume. Nem degrada o padrão moral de um democrata.
A divergência é a base da disputa legítima na
política democrática. Negar, por outro lado, que uma posição política
considerada legítima por metade dos eleitores em duas eleições consecutivas
seja um adversário normal da disputa me parece um delírio irrealista.
Os eufemismos, que transformam a ultradireita
em "populista", ou as hipérboles, que a transformam em
"fascista", ajudam menos do que chamar as coisas pelo seu nome. Olhar
nos olhos do que se enfrenta é essencial. Enterrar a cabeça na areia diante do
adversário nunca foi uma política sensata.
Um comentário:
É uma realidade que me assusta!
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