O Globo
Abominando a competição, muitos temem o
diabólico capitalismo e abraçam o bom e velho patrimonialismo
O traço citado no título acima é o mais
visível e renitente do nosso estilo de governo. E de viver. Seja em casa ou na
rua, na escola ou no bar, na estrada ou na calçada e, muito especialmente, nas
filas — que analisei com Alberto Junqueira no livro “Fila e democracia”, em
2017, mostrando sua fraternidade com a igualdade democrática —, damos
preferência à exceção que nos refaz como nobres e superiores, como bons membros
do “patrimônio”, não como cidadãos.
A lista das exclusões é inesgotável, porque o sistema gira em torno de si mesmo, e não de projetos capazes de promover avanços. Todos os governos que testemunhei tocaram nos mesmos problemas — Previdência, aposentadorias, filhotismo político, pobreza, ajuste de contas públicas, “verdade cambial”, como vituperava um surtado Jânio Quadros, e, sobretudo, a chaga das nossas governanças: uma perene corrupção. Assaltos à coisa pública tanto à direita quanto à esquerda porque, conforme me disse um amigo realista, “ninguém, Roberto, é de ferro!”.
Em suma, é a velha “socio-lógica” dos
sistemas patrimonialistas dramatizados por Giuseppe Lampedusa no conhecido
“tudo muda para não mudar”.
Mudar, romper com um intragável populismo e
inaugurar novos estilos de administrar implicam impessoalidade, em respeito aos
mesmos códigos. Coisa difícil num país que experimentou todos os regimes
políticos e teve nove moedas que exprimiam os diversos pesos de uma
desigualdade que aristocratiza os eleitos pelo povo. Pessoas que se candidatam
como Zé Ninguém e, eleitas, moram em palácios e têm uma vassalagem de
Versalhes. É claro que odeiam o capitalismo, que, a todo momento, inventa um
troço que desbanca outro troço, acachapando marcas e empresas estabelecidas.
A raiva não é com o sistema, mas com o fluxo
dinâmico do mercado, esse espaço universal da oferta e procura ou, como disse
E.B. Tylor, do casar fora ou guerrear. No caso do Brasil, liquidar o adversário
que nosso selvagem realismo político transforma em inimigo ou bandido. Nessa
dialética de aversões ideologicamente legitimadas, esquecemos o Brasil.
Abominando a competição, muitos temem o
diabólico capitalismo e abraçam o bom e velho patrimonialismo, que, obviamente,
a suprime. Nele, tudo é pessoalidade. Exceção e armação. O maior temor do
sistema é a universalidade e a igualdade que democratizam e fazem de todos
donos do patrimônio nacional.
É curioso e patético ver uma multidão de
privilegiados transformando o republicanismo na velha aristocracia
luso-nacional das cidadanias reguladas, como disse um saudoso Wanderley
Guilherme. Tudo regulado, tudo hierarquizado, logo, tudo legislado, tudo controlado,
certo e bom — “legal”!
Papai só toma café sem açúcar, o presidente
elegantemente anuncia não ser idoso porque tem “tesão de 20”. Eu, com meus 80 e
tantos, invejo. Ademais, ele é o supremo magistrado da nação, e eu um cronista
marginal...
Tome ciência. Na terra dos papagaios, o
universal é para os comuns. Os “eleitos” têm lugares reservados. Odeiam-se a
universalidade e a igualdade das regras gerais que hoje chegam ao futebol. Este
atraía, conforme escrevi, precisamente porque todos eram iguais perante as
regras.
Sugiro que um dos pontos a discutir
seriamente não é o mercado, mas nossa mentalidade antimercado. Mentalidade que,
até o Real, promovia uma pandemia de dinheiros que dependiam de seus emissores
ou das trocas em curso. Eram várias línguas faladas ao mesmo tempo, como na
Torre de Babel, esse exemplo bíblico de inflação.
Estratégia do
governo para estimular pequenos negócios passa por 'escada de crédito'
Inflação, vale lembrar, é um “inchamento” que
embaraça limites e bloqueia a ancoragem sem a qual, nós, humanos, não seríamos
capazes de sobreviver.
O melhor caso dessas inchações ocorreu quando
quase liquidamos a moeda em sua universalidade e irredutibilidade como medida
de valor. Normalmente barganhamos preços, mas não moedas, como ocorreu na fase
inflacionária, seguindo o inchaço de uma estrutura social em que cada grupo e
pessoa recebe um tratamento especial. Um tratamento determinado pela maior ou
menor graduação nas regalias, anistias e proximidades com um poder centralizado
e aristocrático, legado do traslado da velha Corte portuguesa para a Colônia.
P.S.: a tentativa de assassinar Trump é um
daqueles inesperados que esperamos quando o bandido vira vítima. Seria um sinal
da tal “brasilianização”?
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