Folha de S. Paulo
A ascensão da extrema direita não foi um
infeliz acaso ou um pesadelo ocasional
Praticamente não se fala de outra coisa no
mundo nos últimos dias, a não ser das eleições
americanas. A perspectiva de uma nova vitória de Trump aumenta a angústia
em qualquer país democrático. Embora não possamos votar, nada nos impede de
cruzar os dedos, compartilhar a aflição, imaginar cenários e projetar
consequências.
O ano de 2024 não é como outro qualquer. Muitos ainda não perceberam, mas este é o ano que confirma que a ascensão da extrema direita não foi um infeliz acaso, um pesadelo ocasional, ou o resultado de uma conjunção astral passageira. Para a política, essa constatação é significativa, pois o avanço do radicalismo de direita é um pesadelo para qualquer democrata.
Duas características definem esse tipo de
movimento político. Primeiro, o desafio explícito e afrontoso a consensos
liberal-democráticos sobre liberdades, moralidade privada, direitos de minorias
e migrantes, meio ambiente, ecologia, arte, cultura e educação.
Segundo, um programa que desrespeita ou
invalida o "design institucional" da democracia liberal e despreza um
governo de leis, favorecendo um governo baseado no arbítrio: desafio às regras
do jogo, ataque sistemático ao Judiciário, indistinção entre Estado e governo,
incitação à desobediência e à sedição.
A extrema direita sente-se muito à vontade
para executar um programa obscurantista e dogmático com relação a valores, não
importa a que custo e quantos direitos e garantias precise violar, e, ao mesmo
tempo, considera os constrangimentos liberais criados para evitar abusos de
poder como um estorvo a ser removido.
Queiramos ou não, Trump
é a locomotiva da extrema direita mundial, devido à dimensão política
e econômica dos Estados Unidos e sua extraordinária influência. Uma vitória de
Trump poderia revelar algo que tememos admitir: a clássica alternância de poder
entre direita, centro e esquerda pode estar com seus dias contados, substituída
pela rotatividade entre esquerda e centro, de um lado, e ultradireita, do
outro.
Uma nova alternância movida por um
antagonismo desesperado. Votou-se em Bolsonaro em 2018 porque parecia ser o
único capaz de derrotar o PT; votou-se em Lula em 2022 porque ele parecia ser o
único com condições de derrotar Bolsonaro.
Biden foi uma aposta para pôr fim ao pesadelo
trumpista em 2020, e a angústia que tomou o mundo esta semana é porque ainda se
procura alguém capaz de impedir o retorno de Trump à Presidência. O mesmo
aconteceu na busca por uma barragem que impedisse a vitória da extrema direita
francesa já em alguns ciclos eleitorais.
Não se trata mais de uma escolha baseada em
um projeto de construção, mas de um ato de desespero para evitar que a parte
temida da política chegue ao poder. É triste que eleições ao redor do mundo
tenham se transformado nessa agonia, mas são essas as novas circunstâncias.
Curiosamente, muitos se recusam a aceitar
que, embora tenha se tornado uma alternativa normal para entre um terço e
metade dos eleitores em grandes democracias americanas e europeias, a extrema
direita seja considerada parte do "novo normal" da política mundial.
É como se reconhecer isso degradasse algum
irrenunciável padrão moral. Ou como se ainda estivesse em poder dos adeptos da
democracia liberal decidir se uma opção eleitoral repetidamente legitimada pelo
voto em toda parte é ou não "normal".
Há itens do cardápio da extrema direita
inaceitáveis numa democracia? Ninguém negou isso. Além do mais, reconhecer que
população aceita a extrema direita como uma opção natural não implica
absolutamente retirar o respaldo das instituições que servem como freios aos
seus abusos.
Todos os recursos que as democracias liberais
inventaram para proteger o sistema de uma ditadura da maioria eleitoral
continuam, felizmente, em vigor. E a arena política continua aberta para que se
possa discutir e enfrentar qualquer solução, valor ou proposta política
democraticamente inaceitável.
Qual seria a alternativa a
"normalizar" a ultradireita como opção eleitoral? Anormalizar? Tratar
como patologia? Satanizar? Repudiar? No território da retórica —e retóricas são
importantes na política— nenhum desses caminhos é vedado.
Repudie-se, conteste-se, enfrente-se —para
isso existe a política. O que não me parece conveniente são outras duas
atitudes. Primeiro, o negacionismo. A extrema direita parece ter vindo para
ficar, lidemos com isso. Segundo, o nominalismo mágico de achar que se a gente
chamar os adeptos da extrema direita de "fascistas" e mandar tatuar
"não normalize" o monstro irá desaparecer. Não vai
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