quarta-feira, 24 de julho de 2024

Wilson Gomes - O que 2024 nos ensina

Folha de S. Paulo

A ascensão da extrema direita não foi um infeliz acaso ou um pesadelo ocasional

Praticamente não se fala de outra coisa no mundo nos últimos dias, a não ser das eleições americanas. A perspectiva de uma nova vitória de Trump aumenta a angústia em qualquer país democrático. Embora não possamos votar, nada nos impede de cruzar os dedos, compartilhar a aflição, imaginar cenários e projetar consequências.

O ano de 2024 não é como outro qualquer. Muitos ainda não perceberam, mas este é o ano que confirma que a ascensão da extrema direita não foi um infeliz acaso, um pesadelo ocasional, ou o resultado de uma conjunção astral passageira. Para a política, essa constatação é significativa, pois o avanço do radicalismo de direita é um pesadelo para qualquer democrata.

Duas características definem esse tipo de movimento político. Primeiro, o desafio explícito e afrontoso a consensos liberal-democráticos sobre liberdades, moralidade privada, direitos de minorias e migrantes, meio ambiente, ecologia, arte, cultura e educação.

Segundo, um programa que desrespeita ou invalida o "design institucional" da democracia liberal e despreza um governo de leis, favorecendo um governo baseado no arbítrio: desafio às regras do jogo, ataque sistemático ao Judiciário, indistinção entre Estado e governo, incitação à desobediência e à sedição.

A extrema direita sente-se muito à vontade para executar um programa obscurantista e dogmático com relação a valores, não importa a que custo e quantos direitos e garantias precise violar, e, ao mesmo tempo, considera os constrangimentos liberais criados para evitar abusos de poder como um estorvo a ser removido.

Queiramos ou não, Trump é a locomotiva da extrema direita mundial, devido à dimensão política e econômica dos Estados Unidos e sua extraordinária influência. Uma vitória de Trump poderia revelar algo que tememos admitir: a clássica alternância de poder entre direita, centro e esquerda pode estar com seus dias contados, substituída pela rotatividade entre esquerda e centro, de um lado, e ultradireita, do outro.

Uma nova alternância movida por um antagonismo desesperado. Votou-se em Bolsonaro em 2018 porque parecia ser o único capaz de derrotar o PT; votou-se em Lula em 2022 porque ele parecia ser o único com condições de derrotar Bolsonaro.

Biden foi uma aposta para pôr fim ao pesadelo trumpista em 2020, e a angústia que tomou o mundo esta semana é porque ainda se procura alguém capaz de impedir o retorno de Trump à Presidência. O mesmo aconteceu na busca por uma barragem que impedisse a vitória da extrema direita francesa já em alguns ciclos eleitorais.

Não se trata mais de uma escolha baseada em um projeto de construção, mas de um ato de desespero para evitar que a parte temida da política chegue ao poder. É triste que eleições ao redor do mundo tenham se transformado nessa agonia, mas são essas as novas circunstâncias.

Curiosamente, muitos se recusam a aceitar que, embora tenha se tornado uma alternativa normal para entre um terço e metade dos eleitores em grandes democracias americanas e europeias, a extrema direita seja considerada parte do "novo normal" da política mundial.

É como se reconhecer isso degradasse algum irrenunciável padrão moral. Ou como se ainda estivesse em poder dos adeptos da democracia liberal decidir se uma opção eleitoral repetidamente legitimada pelo voto em toda parte é ou não "normal".

Há itens do cardápio da extrema direita inaceitáveis numa democracia? Ninguém negou isso. Além do mais, reconhecer que população aceita a extrema direita como uma opção natural não implica absolutamente retirar o respaldo das instituições que servem como freios aos seus abusos.

Todos os recursos que as democracias liberais inventaram para proteger o sistema de uma ditadura da maioria eleitoral continuam, felizmente, em vigor. E a arena política continua aberta para que se possa discutir e enfrentar qualquer solução, valor ou proposta política democraticamente inaceitável.

Qual seria a alternativa a "normalizar" a ultradireita como opção eleitoral? Anormalizar? Tratar como patologia? Satanizar? Repudiar? No território da retórica —e retóricas são importantes na política— nenhum desses caminhos é vedado.

Repudie-se, conteste-se, enfrente-se —para isso existe a política. O que não me parece conveniente são outras duas atitudes. Primeiro, o negacionismo. A extrema direita parece ter vindo para ficar, lidemos com isso. Segundo, o nominalismo mágico de achar que se a gente chamar os adeptos da extrema direita de "fascistas" e mandar tatuar "não normalize" o monstro irá desaparecer. Não vai

 

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