O Estado de S. Paulo
Decisões de congressistas podem resultar em
benefícios a localidades específicas, mas ponto de partida deve ser a realidade
nacional
“Se (...) sou obrigado a dar R$ 2 milhões
para uma cidade que me deu só 2 mil votos e R$ 100 mil para uma cidade que me
deu 20 mil votos, o que vou dizer para essa última cidade? (...) Prefeitos me
procuram às vezes, e eu saco o mapa e vejo. Aí digo: 'Só tive 80 votos lá?'. Na
hora da eleição ele fechou com outro candidato, agora quer emenda? Não dá”.
Essas são declarações do deputado Joaquim Passarinho (PL-PA) à reportagem do jornal Folha de S.Paulo. Ali, Passarinho trata do direcionamento de verbas do Orçamento a redutos eleitorais dos parlamentares através das emendas individuais ao dispor de cada um deles. Ele dá como exemplo a cidade de Brejo Grande do Araguaia (PA), onde disse ter tido boa votação no passado. Nas eleições de 2022, porém, o deputado teria recebido votação bem inferior, o que atribuiu à aliança do prefeito da cidade com outros candidatos a deputado federal: “Resultado: estão há dois anos sem emenda. Só R$ 100 mil que mandei para lá” (‘Edital de emendas parlamentares’ empaca em Congresso com fartura de verba gasta sem critério, 5/11/2023).
O caso suscita a pergunta: quem esse parlamentar está representando?
Não se ignora aqui a importância das
informações colhidas e das carências constatadas pelos parlamentares em suas
bases eleitorais para o direcionamento de recursos do Orçamento. Mas é preciso
lembrar também que ações como as descritas acima são realizadas pelos
parlamentares na condição de representantes. Ou seja, cada um deles atua (para
decidir sobre a alocação dos recursos) no lugar e em nome de todos os
brasileiros.
Assim, suas decisões podem muito bem resultar
em benefícios a localidades específicas (seus municípios de origem, por
exemplo), mas o ponto de partida dessas decisões deve ser a realidade nacional.
Afinal, os critérios para o direcionamento de recursos públicos interessam ao
País como um todo, inclusive às localidades desfavorecidas na distribuição
desses recursos.
A propósito, em artigo neste jornal, os
especialistas Mariana Almeida e Pedro Marin apontam que “os parlamentares não
têm sido capazes de direcionar suas emendas na área de saúde para os municípios
onde esses recursos seriam mais necessários”. No exemplo dos autores, “as
cidades com os índices mais baixos de mortes prematuras por doenças crônicas
não transmissíveis receberam em média 62% mais recursos per capita do que
aquelas com maiores dificuldades nesse indicador. Ao privilegiar suas bases
políticas, os parlamentares podem ignorar situações mais dramáticas nos
municípios vizinhos” (Afinal, de quem deve ser o orçamento público?,
27/4/2024).
Isso também aparece na reportagem citada no
segundo parágrafo, em que se recordam, por exemplo, os locais com escassez de
água no sertão nordestino que foram deixados de lado na entrega de
caixasd’água, enquanto centenas de reservatórios ficavam estocados em cidade de
líder do Centrão. Casos de favorecimento familiar, como o envio das opacas
“emendas Pix” a prefeituras de parentes de deputados, também foram encontrados.
Como se vê, parte dos recursos decorrentes de
emendas parlamentares é usada de maneira ineficiente, com dezenas de milhões de
reais sob controle de cada um dos congressistas, que não raro atuam sem
coordenação (e, às vezes, contra a lei). Aumentam, assim, as chances de
estradas parcialmente afastadas, tratores ociosos, kits de robótica para
escolas em ruínas, em prejuízo da ação efetiva do Estado em áreas complexas e
vitais, como a saúde. Nesse campo, é necessária “uma rede de assistência, com
postos de saúde nas localidades menos populosas e hospitais de referência
estrategicamente localizados (...) para atender a diversos municípios. Isso
requer planejamento e coordenação (...). Com cada deputado e senador decidindo
construir hospitais onde acharem melhor, o sistema perde funcionalidade e os
custos totais disparam” (As emendas de relator e as narrativas falaciosas, de
Paulo Hartung, Marcos Mendes e Fabio Giambiagi).
Isso se torna mais preocupante ao
considerarmos que metade do que o governo conseguiu de espaço extra para gastar
na última década foi usada para pagar emendas dos parlamentares. E quanto mais
dinheiro à disposição deles, maiores suas chances de reeleição. Como diz o
colunista Roberto Macedo, “o candidato incumbente tem o privilégio das emendas
relativamente a outros, com o que também faz propaganda fora do período
eleitoral e no processo recebe indiretamente um financiamento de campanha por
parte do governo” (Problema das emendas parlamentares se agravou, 4/1/2024).
É natural que um político queira se reeleger,
mas os meios pelos quais muitos parlamentares buscam viabilizar isso
ultrapassam o aceitável, pois não só desperdiçam os poucos recursos ainda
desvinculados de despesas obrigatórias (folha de salários, aposentadorias),
como também alijam concorrentes e discriminam cidadãos necessitados. Ao que
tudo indica, parte dos nossos parlamentares não tem qualquer interesse em
distinguir-se como intérpretes ou líderes das mudanças de que o País necessita.
O mandato parlamentar, para eles, é um empreendimento individual cujo sucesso
chama-se reeleição.
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