O Globo
A mesma atitude de Ricardo III perante a
vida, de cobrança intransigente, pode ser encontrada no discurso da extrema
direita
Na pena de Shakespeare, Ricardo III era
maldade pura, ambicioso sem limites, capaz de qualquer coisa pelo poder. De
feiura profunda, assustava quem lhe aparecesse pela frente. Julgava-se um
injustiçado e, como tal, autorizado a cometer o mal. A matança por ele
promovida era o exercício de uma espécie de direito à reparação, a que,
possesso, ele julgava fazer jus: uma rasteira na crueldade do destino, que lhe
condenara à feiura chocante e brutal.
“Ricardo III”, de Shakespeare — peça analisada por Freud em ensaio conhecido —, põe em evidência o direito a ser vilão em contexto de supostas injustiças. O mundo passa a ser devedor, culpado, de modo que uma pessoa pretensamente injustiçada pelo destino se sente como que autorizada a ser injusta, transformando a vida dos outros na tragédia que é sua própria vida.
Trazendo a ideia para o século XXI, a mesma
atitude de Ricardo III perante a vida, de cobrança intransigente, pode ser
encontrada no discurso da extrema direita, que vem assolando o mundo. O mundo —
o que, evidente, inclui coisas tão importantes como democracia ou meio ambiente
— deve ser implodido, numa atitude de vingança, na medida em que o próprio
mundo não teria dado voz e vez a toda uma classe, que sempre vivera nas
sombras. É a desforra dos ressentidos — o momento de glória dos “cobradores”,
daqueles que se guiam pelo sentimento de vingança, cobrando do mundo, dia e
noite, reparação a que julgam ter direito.
Interessante pensar nisso como resultado, em
parte, da dissociação, cada vez maior, entre política e ideologia. Política
pressupõe necessariamente antagonismo, conflito de ideias. A política
democrática precisa ter ascendência real sobre desejos e fantasias. Como
identifica Chantal Mouffe, quando a divisão social não pode se manifestar em
razão da pouca clareza da linha divisória entre esquerda e direita, as paixões
não podem ser mobilizadas na direção dos objetivos democráticos, e os
antagonismos assumem formas que podem pôr em risco as instituições
democráticas.
O que se vê hoje é a substituição da divisão
entre esquerda e direita pelo antagonismo baseado na divisão do povo contra o
“establishment”. O debate político descambou para o campo moral, onde, na
medida em que o “bem” se contrapõe ao “mal”, não há adversário, mas inimigo a
ser eliminado. O desafio, portanto, é a construção de um espaço onde o
pluralismo seja respeitado e onde, sobretudo, haja visões conflituosas de
mundo, capazes de gerar identificação e mobilização.
Se a construção desse espaço é um projeto de
longo prazo, o que temos de imediato são as instituições, que exercem papel
relevantíssimo, já que contribuem para frear o ânimo destrutivo dos seres
humanos. No Brasil, é preciso ressaltar — e louvar — a atuação do STF na
manutenção da nossa democracia. É ele quem, em última instância, vem dizendo
“não”. Acontece que, para continuar exercendo sua função, o Supremo precisará
cada vez mais de capital político, o que depende, em grande parte, da sua
capacidade de se fazer respeitar. Do contrário, se não restar nem mesmo o STF,
estarão dadas as condições para os “cobradores” fazerem a festa.
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