Valor Econômico
Falta de um processo mais amplo de educação
política na sociedade, que deve ser prévia aos processos eleitorais
Quem acompanha a eleição na cidade de São
Paulo geralmente não tem dúvida de que os debates atuais têm sido os piores de
todos os tempos. O nível de violência física e verbal foi inédito. Um dos
candidatos, Pablo Marçal, veio para confundir, não para explicar, buscando
desmoralizar a democracia. O descrédito da discussão foi ampliado pelo uso
recorrente de pegadinhas sobre a trajetória dos candidatos, tentando colocar
todos na mesma vala, o que é uma mentira. No fim, faltou responder o principal:
como seria o governo de cada um deles? Esta é a pergunta que deveria estar no
centro dos debates.
Se a utilidade dos debates pudesse ser definida em poucas palavras, a melhor definição é a produção de informação para definição do voto de acordo com o que se espera do exercício do cargo público em questão. Numa eleição municipal, o debate tem de servir para que os eleitores saibam como deverá ser o governo de cada um dos concorrentes a prefeito. Há outros elementos que podem ser julgados, porém, eles serão secundários frente ao conhecimento da agenda prioritária, das soluções para as políticas públicas e do modo de governar que será adotado.
Entre os aspectos que estão em jogo, faz
muito sentido a crença de que o confronto entre os candidatos poderia elucidar
melhor a qualidade de suas ideias. Uma decisão mais consistente supõe a
comparação de candidaturas, pois isso gera mais elementos para saber o quanto
cada um diz é verdadeiro e factível. Claro que o debate envolve a capacidade de
oratória e até uma teatralidade, mas fiar-se apenas na performance não é,
necessariamente, escolher o que está mais preparado para ser prefeito.
Não há como fugir por completo da avaliação
da forma de se apresentar dos concorrentes, mas é preciso ter cuidado para não
se enganar pelas aparências. Há performances muito bem treinadas pelos
marqueteiros, aqueles que seguem a psicologia dos coaches - com suas frases de
livro de autoajuda e visual de mauricinho com a academia em dia - e, ainda, os
que constroem a persona política do ogro, tão atraente numa época em que
pessoas buscam um “malvado favorito” para ser seu líder político.
O fato é que boa parte dos eleitores é
convencida pelas características performáticas dos candidatos, que podem ter um
peso maior na escolha eleitoral do que a consistência dos programas e das
estratégias de governabilidade.
O problema é que quando se ganha a eleição, o
que importa no dia seguinte é saber governar. Por um tempo se pode continuar no
modelo político do entretenimento, ao estilo Milei, mas uma hora chega a conta
dos atos como governante. Foi assim com Collor, quando o povo se cansou de
vê-lo andando de jet ski. Também ocorreu com Bolsonaro, pois embora os seus
seguidores acreditassem no sentido mágico da cloroquina, a maioria do
eleitorado deixou de apoiá-lo quando ele não soube governar diante de uma
pandemia.
É preciso ter cuidado também com outra
artimanha dos debates. São as pegadinhas, que envolvem armadilhas sobre
atributos pessoais, trajetórias de vida e até conhecimentos sobre a Bíblia! Uma
coisa é questionar atos que tenham a ver com a vida pública ou o descumprimento
de leis. Bem diferente é procurar fatos na vida pessoal que não tenham nenhuma
vinculação com as qualidades requeridas de um prefeito ou prefeita.
Um bom governante tem de ser honesto, tomar
as decisões certas no campo das políticas públicas e construir consensos com
políticos que pensam diferente dele, mas tais qualidades não têm nenhuma
relação necessária com o número de vezes que se foi à missa ou ao culto, nem
com o gênero ou idade do político.
Há algo ainda pior neste campo da rinha
pessoal: a produção de mentiras sobre políticos para queimá-los por razões
morais junto ao eleitorado, como a insinuação de Pablo Marçal acerca do uso de
drogas por Boulos ou, ainda mais nojento, sobre a responsabilidade de Tabata
Amaral em relação ao suicídio de seu pai. Se parte do eleitorado está
sancionando esse comportamento calhorda, constata-se o quão doente
politicamente está parte da população paulistana.
Tomado como um jogo em busca da destruição da
reputação moral dos candidatos, o debate produz, ao fim e ao cabo, uma
desmoralização da política democrática. Isso transforma todos os candidatos em
seres agressivos em potencial e com menos tempo para discutir como seriam
efetivamente seus futuros governos.
O diálogo entre políticos concorrentes
deveria captar o que de melhor eles têm a oferecer à sociedade. Só que na
lógica da política como entretenimento que tem predominado, até os melhores e
mais capacitados políticos têm abandonado a discussão de ideias e sua
viabilização, entrando no ringue para brigar com os que não têm a mínima noção
de como resolverão problemas de uma megacidade extremamente complexa como São
Paulo.
A ideia de que o debate é uma disputa
performática torna-se verdadeira até em setores mais comprometidos com a
melhora da qualidade da democracia. Boa parte da imprensa, por exemplo, tem
valorizado aspectos laterais vinculados à capacidade de provocar o outro ou
usar melhor o tempo, mesmo que seja para dizer nada relevante para o futuro da
cidade.
A mídia deve ser vigilante com todos os
governos, mas deveria desde as eleições cobrar o que é essencial para o sucesso
das políticas públicas. Lembrando das perguntas clássicas que movem as matérias
jornalísticas, o que é central são quatro coisas: 1) qual é o diagnóstico de
cidade que orienta o candidato? 2) quais políticas públicas serão escolhidas
para enfrentar os problemas encontrados? 3) de que maneira tais soluções serão
implementadas? e 4) com quem e de que maneira o prefeito eleito governará?
Com base nestas questões, e por meio da
comparação das respostas dos competidores, os debates seriam mais úteis como
antessala do futuro governo. Do ponto de vista da imprensa ou de organizações
da sociedade civil, na maior parte dos casos há informações e evidências
científicas que podem ser utilizadas para avaliação das propostas em disputa.
É verdade que alguns temas supõem
controvérsias ideológicas e mais de uma resposta possível. Parte do sucesso de
um governante está ligado a preferências sociais dominantes ou a inovações que
encontram caminhos que não eram conhecidos na época da eleição. Mesmo assim, um
cardápio de possibilidades governativas poderia ser o principal instrumento de
aferição do sucesso nos debates, em vez de questões performáticas laterais.
O conhecimento sobre a factibilidade das
propostas de governo não resolve um problema central das democracias: como
traduzir para o cidadão comum questões muito técnicas e/ou só conhecidas por
quem acompanha a política diariamente? Duas soluções seriam válidas aqui. Uma é
chamar os eleitores para fazer perguntas aos candidatos, como é comum nos
Estados Unidos e que o debate do Flow realizou com boa qualidade. Ver como os
políticos apresentam o que será seu futuro governo para uma pergunta popular é
um teste mais interessante do que a troca de xingamento no nível do quinto ano
escolar que marcou boa parte da eleição paulistana.
Além disso, o processo democrático se
fortalece quando os debates se orientam por questões que tornam comparáveis
pelo menos duas propostas de governo e seus modelos de governabilidade - isto
é, como serão implementadas, com quais alianças e formas de negociação.
É politicamente muito mais produtivo colocar
uma mesma pergunta para dois ou mais concorrentes, ouvir separadamente suas
respostas e deixar um espaço para que cada um comente a proposta do outro sem
fugir do tema. Ninguém precisa definir quem está certo se não o próprio eleitor
que está assistindo ao debate, mas ele terá elementos mais consistentes para
tomar suas decisões.
Uma das causas de desperdiçarmos debates que
fogem do essencial e valorizarmos elementos performáticos secundários - por
vezes até premiando com exposição e votos propostas estapafúrdias ou
enganadoras de seus verdadeiros objetivos - está na falta de um processo mais
amplo de educação política na sociedade, que deve ser prévia aos processos
eleitorais. As escolas deveriam ensinar que as discussões sobre temas coletivos
são um meio para resolver adequadamente os problemas. Exercícios práticos para
equacionar dificuldades do ambiente escolar seriam uma forma de realizar isso.
A educação política, no entanto, não deve
caber apenas às escolas. Igrejas, empresas e outros ambientes coletivos
poderiam construir processos decisórios que valorizassem o debate capaz de
resolver problemas. Afinal, uma empresa quer soluções efetivas e não deveria
nunca apostar em ideias absurdas e/ou lideranças que se destacam apenas porque
são performáticas. Embora o respeito à diversidade de pessoas tenha muitos
defensores na sociedade, por que então candidatos preconceituosos são aclamados
após debates eleitorais?
No fundo, se os debates têm tido má qualidade
em São Paulo, a causa disso não está apenas nos candidatos. O que temos medo de
enfrentar é que parte do problema está na sociedade e nos valores de parcela
relevante da população. Tão triste quanto o aplauso a comportamentos
deploráveis é a incapacidade de perceber que a mentira agressiva nunca
produzirá bons governos.
Bom voto a todos e todas no domingo.
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