Folha de S. Paulo
É melhor país polarizado se juntar por
interesse nacional do que por fantasia ideológica
Foi preciso um tarifaço disparado com sotaque novaiorquino e topete tingido para o Brasil cogitar, mesmo que por instantes, uma trégua ideológica. Donald Trump, ídolo de uma ala da direita brasileira que tem orgulho de mugir em inglês, pode acabar provocando a primeira reconciliação entre petistas, isentões e bolsonaristas desde que a polarização virou o esporte nacional, com torcida organizada, juiz comprado e zero fair play.
Trump, que conduz diplomacia com a sutileza de uma geladeira velha barulhenta,
resolveu mirar sua artilharia econômica no Brasil. Uma bomba tributária com
endereço certo. Alvo: o agronegócio, aquele mesmo que muitos tratam como sinônimo
de patriotismo e motor da pátria que alimenta o mundo. Sobrou para o aço, para os aviões da Embraer, para o boi, para a soja e
para o orgulho de muita gente que decorou a frase "agro é tech, agro é
pop, agro é tudo".
E aí começou o curto-circuito. De repente, a
turma que gritava "Brasil
acima de tudo, Deus acima de todos" precisa escolher entre
a bandeira que beija e o gringo que idolatra. É quase como
pedir a um adolescente que escolha entre o iPhone e o TikTok: um curto-circuito
emocional.
Como explicar para a tia do Zap, aquela que
coleciona figurinhas da Michele Bolsonaro e vídeos de exorcismo anticomunista,
que o Trump não é "dos nossos"? Nunca foi. Não acorda pensando no
futuro do agronegócio
brasileiro, não defende valores cristãos nem luta contra o comunismo. Ele
apenas faz o que sempre fez: proteger os próprios interesses. E agora está
usando a economia brasileira como moeda de troca para blindar seu velho
aliado: Jair Bolsonaro. Quem paga a conta é o Brasil.
O velho símbolo da soberania nacional, o
uniforme da seleção e das passeatas golpistas, anda suando frio. Agora,
talvez a camiseta de futebol volte a ser só... Uma camiseta. Quando o ataque
vem de um ídolo conservador, com o mesmo discurso reaça que tanto agrada essa
turma, o Zé das Couves começa a perceber que ser patriota de verdade não é
gritar contra inimigos imaginários, é defender o país de quem ameaça, de fato, os nossos interesses.
Nos últimos tempos, o patriotismo virou um
software binário. Ou você era "patriota", com bandeirinha no nome e
assinatura "Deus, Pátria, Família e Mico-Leão-Dourado", ou era
traidor: aquele que ousava criticar militares, desconfiava da cloroquina e
preferia Paulo
Freire ao Olavo de Carvalho.
Mas eis que Trump reaparece e exige uma
atualização urgente nesse sistema. Afinal, é pra ser patriota ou é pra passar
pano? Dá pra colocar bandeirinha brasileira no perfil sem parecer infiltrado no
grupo do Zé Trovão? É permitido cantar "230 milhões em ação" sem soar
como se estivesse prestes a invadir o STF? Ou, como diria
o coach mais sensato do Brasil, aquele motorista de táxi que já leu Augusto
Cury, você quer ter razão ou quer ser feliz?
Com o tarifaço, o país vive um raro momento
de consenso. Do Leblon a Roraima, do barzinho progressista ao grupo do agro
no Telegram, todo mundo achou um inimigo comum. Pela primeira
vez em anos, a esquerda e a direita se olham, desconfiadas, mas unidas na
indignação, ainda que estejam disputando de que é a culpa do delírio trumpista:
"Bolsonaro maldito! Lula desgraçado!"
Talvez, no fim, Trump acabe fazendo pelo
Brasil o que nenhum político local conseguiu: um lampejo de lucidez coletiva.
Uma pausa no Fla-Flu ideológico para lembrar que, no fundo, ninguém gosta de
tomar prejuízo nem de ser feito de bobo. E se for isso que nos une, que seja.
Melhor se juntar por interesse nacional do que por fantasia ideológica.
Talvez eu esteja sonhando demais. Pronto,
acordei.
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