Correio Braziliense
Mais do que técnico, o voto
abriu uma janela para a defesa do ex-presidente alimentar a narrativa de
perseguição política e, futuramente, pedir a anulação do julgamento
O voto do ministro Luiz Fux, no julgamento de Jair Bolsonaro e outros réus pela tentativa de golpe de Estado, surpreendeu não apenas pela dissidência em relação ao relator, Alexandre de Moraes, mas, sobretudo, pela radicalidade de suas consequências: ele defendeu a anulação integral do processo, sob o argumento de que a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) não teria competência para conduzi-lo. E no mérito das acusações, absolveu o ex-presidente de todos os crimes que lhe são imputados. Somente condenou o tenente-coronel Mauro Cid e o general Braga Neto. O julgamento está 2 x 1 a favor da condenação dos 8 réus.
Segundo Fux, a prerrogativa de foro, que
fundamentaria a tramitação no Supremo, cessaria automaticamente com o término
do mandato. Como os acusados já não exerciam cargos públicos quando a ação foi
proposta, o STF estaria diante de uma “incompetência absoluta”. A frase
surpreendeu a maioria da Primeira Turma, que já havia afirmado entendimento
contrário no início da análise: de que o foro permanece quando os crimes são
imputados ao tempo do exercício da função presidencial.
Mais do que um voto técnico, a manifestação
de Fux abriu uma janela para a defesa de Bolsonaro alimentar sua narrativa de
perseguição política e, futuramente, pedir a anulação do julgamento. O discurso
do ministro, ao falar em nulidade e incompetência, deu mais legitimidade às
críticas dos advogados de defesa — e, mais do que isso, uma narrativa para os
aliados do Bolsonaro. Apesar de isolado, o voto pode servir de base para
recursos futuros e para o discurso de vitimização do ex-presidente.
Do ponto de vista imediato, para o assunto
ser remetido ao plenário do Supremo, será necessário que outro ministro
acompanhasse Fux e abra caminho para embargos de divergência. Mas, mesmo sem
isso, o voto dissidente aberto já é um “caminho das pedras” para uma eventual
contestação da condenação no futuro. As defesas sabem que um voto dissonante
basta para alimentar pedidos de revisão, ainda que em outros contextos ou com
nova composição do tribunal.
O confronto técnico e político de Fux com
Moraes não poderia ser mais evidente. Ao votar, o relator sustentou a
manutenção da competência do STF, afirmando que os crimes têm nexo direto com o
exercício do mandato presidencial e com a tentativa de subversão da ordem
democrática. Para Moraes, retirar o processo do Supremo significaria, em última
análise, fragilizar a própria defesa do Estado de Direito.
Virou “garantista”
Ao questionar também a remessa do caso à
Primeira Turma, em vez do Plenário, Fux acentuou uma divergência institucional
que, por si só, pode acabar provocando uma reapreciação do foro pelo plenário
do Supremo, quando o ministro André Mendonça, aliado de Bolsonaro, assumir a
presidência da Corte, no próximo ano. Argumentou que “a Constituição fala em
plenário, não em turmas” e que reduzir a análise a apenas cinco ministros
diminuiria a legitimidade da decisão. Essa crítica, embora de natureza
procedimental, foi lida pelos colegas como uma desautorização à prática
consolidada desde a resolução de 2023, que distribuiu ao colegiado menor os
casos de ex-presidentes.
Os demais ministros da Corte, nos bastidores,
comentavam que Fux mudou de posição radicalmente em relação ao mensalão, por
exemplo. Naquele julgamento, em 2012, foi quem mais acompanhou o relator
Joaquim Barbosa nas condenações duras aos réus. Em 2016, na Lava-Jato, chegou a
ser celebrado por procuradores e por Sergio Moro, que cunhou a célebre frase “In
Fux we trust”, como fiador do rigor punitivo. Em 2021, já como presidente do
STF, reagiu de forma dura aos ataques de Bolsonaro no 7 de Setembro,
classificando-os como crime de responsabilidade e ato antidemocrático.
Agora, se tornou o mais “garantista” dos
ministros. A incoerência não passou despercebida. Juristas lembraram que ele
próprio, em outros julgamentos ligados ao 8 de Janeiro, não sustentou a mesma
tese de incompetência do Supremo. Esse deslocamento revela não apenas uma
contradição pessoal, mas, também, a instabilidade jurisprudencial que marca a
Suprema Corte brasileira. A crítica não é nova: decisões divergentes, em prazos
curtos, sobre temas idênticos, corroem a previsibilidade e alimentam a
percepção de parcialidade. O voto de Fux, ainda que juridicamente fundamentado,
projeta mais incerteza sobre um processo e toca fogo na radicalização política
do país.
Para a defesa de Bolsonaro, foi um presente inesperado: ainda que derrotado no mérito, o ex-presidente poderá alegar que houve ministro do Supremo reconhecendo nulidade insanável. Para a opinião pública, o gesto reforça a narrativa de perseguição, na medida em que mostra fissuras dentro do tribunal. Mas a maior repercussão, porém, será o reforço à narrativa do presidente Donald Trump e seus assessores de que Bolsonaro está sendo perseguido, a liberdade está sendo ameaçada e de que a Corte age ditatorialmente, embora a dissidência de Fux e o voto diferenciado do ministro Flávio Dino, na terça-feira, seja a demonstração de que está havendo um julgamento de verdade, sem cartas marcadas.
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