O Globo
A perplexidade geral com o voto do
ministro Luiz Fux no
julgamento da trama golpista ainda renderá muita discussão sobre o que
aconteceu desde a madrugada de 7 de setembro de
2021, que ele atravessou insone na sede do Supremo Tribunal Federal (STF),
até a noite de ontem, quando votou para absolver Jair
Bolsonaro de todos os crimes de que é acusado.
Lá atrás, como presidente do STF, Fux fez um
duro pronunciamento afirmando que “ofender a honra dos ministros, incitar a
população a propagar discursos de ódio contra a instituição e incentivar o
descumprimento de decisões judiciais são práticas antidemocráticas e ilícitas,
intoleráveis”.
Agora, para ele, “entrevistas e discursos não
são crimes, ainda que sejam rudes”, e o máximo que aconteceu nos estertores do
governo Bolsonaro foi a mera cogitação de um golpe, que não merece punição.
Será difícil também entender como o Fux de ontem se coaduna com o de setembro de 2023, que acompanhou o voto do relator Alexandre de Moraes pela condenação no julgamento do primeiro réu do 8 de Janeiro — Aécio Lúcio Costa Pereira, que, segundo a Procuradoria-Geral da República (PGR), participou dos ataques às sedes dos três Poderes — e concordou com a pena de 17 anos de prisão por associação criminosa armada, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, tentativa de golpe de Estado, dano qualificado pela violência e grave ameaça com substância inflamável contra o patrimônio da União e deterioração de patrimônio tombado.
Independentemente do diagnóstico sobre a
transmutação de Fux, é certo que ele jogou combustível na fogueira de um
julgamento que, embora se soubesse ser histórico, até então parecia ser um
repeteco da avaliação da denúncia, com divergências menores num contexto
dominado pela posição de Moraes e pelo consenso em torno da condenação dos
réus.
Em seu voto, Fux abraçou teses em que nem a
defesa de Bolsonaro se animou a insistir — como aquela segundo a qual o
ex-presidente, na verdade, nunca quis nem sugeriu que se tentasse um golpe de
Estado para impedir a posse de Lula.
E, ao incorporar totalmente a narrativa do bolsonarismo sobre o que se deu nos
últimos meses de 2022, ainda lançou no plenário da Primeira Turma do Supremo
todos os elementos históricos que nos trouxeram até aqui.
Do inconformismo com as decisões da Corte no
mensalão e na Operação
Lava-Jato à ideia de que Bolsonaro teve tanta culpa do golpismo
quanto Lula na facada perpetrada por Adélio Bispo durante a campanha de 2018,
passando pelo embate entre liberdade de expressão e a “ditadura do Judiciário”
e pela comparação do 8 de Janeiro com as manifestações de junho de 2013, estava
tudo lá.
Para além da profusão de citações a teorias e
juristas daqui e do exterior, o que coruscava ao fim da sessão era a armadura
de herói da direita, que o bolsonarismo fez questão de promover nas redes
sociais.
Embora muito provavelmente Fux vá ser vencido
ao final, as nulidades e a absolvição defendidas por ele preparam o terreno
para uma virada jurídica nos moldes da operada em 2021 pelo mesmo Supremo para
enterrar as condenações da Lava-Jato. Se vingará, é difícil prever, mas também
não convém duvidar.
Supremo: As pistas de
Fux antes do julgamento de Bolsonaro
Magnitsky: Empresa dona
de imóveis da família de Alexandre de Moraes entra na mira dos EUA
Para completar, aos argumentos de Fux
fatalmente se seguirá uma resposta de Moraes, que também encarna há tempos o
avatar de herói da democracia e da esquerda e que dificilmente será uma
contradita ligeira, suave ou circunscrita a argumentos técnicos ou a apenas
esta fase do processo da trama golpista. Daqui para a frente, qualquer decisão
ligada ao caso, que ainda tem mais quatro grupos de acusados para ser julgados,
reprisará o embate entre os polos representados por Moraes e Fux.
Depois do que se viu ontem, ficou para trás
qualquer esperança de um debate produtivo sobre as questões que realmente
deveriam ter sido enfrentadas para levar o Supremo ao comedimento necessário —
como o excesso de decisões monocráticas, os inquéritos intermináveis ou a
normalização do juiz que é vítima, investiga, relata e condena num mesmo
processo.
Agora, tudo isso fica subordinado à guerra
dos tronos do Judiciário. O Supremo passa a ser o palco das decisões — e não
nos enganemos, das articulações — que formarão o tabuleiro das eleições de
2026. E nós, condenados a viver mais uma campanha marcada por extremismos de
todo tipo.
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