sexta-feira, 26 de dezembro de 2025

A revolução urbana na favela. Por José de Souza Martins

Valor Econômico

Heliópolis, que recentemente ganhou um teatro de alto padrão para sua sinfônica, tem se beneficiado de uma sucessão de iniciativas de origem popular

Um mês antes deste Natal, a favela de Heliópolis, em São Paulo, inaugurou o Teatro Baccarelli, com 530 lugares, de acústica de alto padrão. Ali é a casa da Orquestra Sinfônica de Heliópolis, regida pelo maestro Isaac Karabtchevsky, e do Coral Jovem Heliópolis, regido pelo maestro Otávio Piola.

A orquestra tem se apresentado em diferentes salas de concerto da cidade de São Paulo, do estado e de outros estados. A competência profissional de seus músicos tem atraído a visita de grandes nomes da música interessados em conhecer a experiência.

Sensibilizado por um incêndio, ocorrido em 1996, que destruiu barracos na favela, o maestro Silvio Baccarelli, mineiro, ex-padre, professor de música, morador das proximidades, começou a dar aulas de música para crianças do lugar. A iniciativa expandiu-se e deu nascimento ao Instituto Baccarelli.

Heliópolis talvez seja no mundo o primeiro desse gênero de coletividade a ter orquestra sinfônica e o respectivo teatro de alto padrão. Uma das maiores do país, tem, segundo o Censo do IBGE, 55 mil habitantes.

Caracteriza-se por uma sucessão de iniciativas de origem popular e com apoio de convênios com instituições que ali viabilizam uma peculiar versão da chamada revolução urbana.

Mas também de parte da própria população de Heliópolis surgiram iniciativas de inovação social. Até surpreendentes indícios de uma movimentação popular na favela de Heliópolis vieram a lume com o documentário cinematográfico de Wagner Morales, “Preto Contra Branco”, de 2004.

Morales, formado em ciências sociais pela USP, estudou e documentou um grupo que, na favela, desde o início dos anos 1970, resolvera enfrentar a seu modo o problema do racismo, forte no vocabulário cotidiano da população local. Majoritariamente constituída por migrantes do Nordeste e por mestiços, sobretudo de uma mestiçagem que se acentuou no encontro inter-racial dos adventícios. Os que foram atraídos pelas possibilidades de trabalho da região.

Queixavam-se, no entanto, dos xingamentos racistas entre eles. Filosofavam: xingamentos racistas entre amigos não são racismo porque a situação não é racista. Isso é sociológico. Tem muito da sociologia de Antonio Gramsci, dos “Cadernos do cárcere”. Expressão da dupla linguagem e duplas e coexistentes sociabilidades, como se fossem duas sociedades diferentes constituídas pelas mesmas pessoas. Duplas e antagônicas personalidades.

Foram esses migrantes que tiveram uma das mais criativas iniciativas no sentido de redefinir valores sociais e refundar o comunitarismo de origem. Trabalhadores, reuniam-se no começo da noite para o jogo do 21 e a cervejinha. E para conversar.

Não era incomum o palavrão e xingamento de cunho racista. Especialmente nas disputas de futebol de várzea dos fins de semana. Um senhor preto, idoso, com liderança no grupo, propôs que se fizesse uma disputa anual, antes do Natal, de pretos contra brancos. Com forte incidência de mulatos na população, os participantes dos times, porém, tinham que decidir se eram brancos ou pretos.

Essa proposta acirrou o conflito racial, embora fossem todos amigos e até parentes. A proposta inclui a presença das famílias e a realização de um churrasco coletivo de confraternização, independentemente do resultado do jogo. Retornam à sociabilidade cotidiana não conflitiva. Acabam abraçados e fazendo a crítica da linguagem racista empregada minutos antes.

Não parou por aí a criatividade de Heliópolis. A população queria ter uma biblioteca comunitária. Numa das casas típicas, criou-a com base numa lista de 100 livros sugerida por Antonio Candido, da USP.

De grande importância e de grande repercussão na concepção de modo de viver e de morar, em Heliópolis, são os condomínios inventados e implantados pelo arquiteto Ruy Ohtake.

Ele fizera uma visita à favela e comentara, numa entrevista, que as habitações eram muito feias. Um morador o visitou e o desafiou: por que então ele não fazia a favela ficar bonita? Ele começou a refletir sobre o problema de moradia para as populações desvalidas. Conseguiu convencer o programa federal Minha Casa, Minha Vida a aceitar sua sugestão de que uma transformação no morar dependia de uma mudança radical na concepção de condomínio e de habitação.

Criou os chamados “Redondinhos”, diferentes e opostos aos conjuntos do Projeto Cingapura e do Projeto CDHU, que são habitações de confinamento e isolamento e de sociabilidade restritiva, baseadas no primado da linha reta.

Nos “Redondinhos”, o espaço do pátio é especialmente destinado à sociabilidade das crianças e dos vizinhos. O desenho circular dos apartamentos abre-os para uma visibilidade externa ampla, superadora da visibilidade voltada para dentro.

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