quinta-feira, 25 de dezembro de 2025

Lógica do escândalo diário. Por Ricardo Queiroz Pinheiro

Ontem publiquei um texto mais longo sobre como a crise da democracia liberal vem sendo administrada por rearranjos institucionais que administram o esvaziamento do modelo. Hoje, lendo o noticiário político, fiquei com a sensação de déjà-vu: o mesmo processo reaparece ali, só que traduzido numa linguagem mais simples, noveleira, quase infantil, feita para caber na lógica do escândalo diário.

A mídia opera e fatura esse tipo de crise como uma história de bandidos e mocinhos. Precisa de personagens nítidos, conflitos personalizáveis, heróis provisórios e vilões descartáveis. Cada dia cai um, sobe outro. No caso da denúncia da Malu Gaspar envolvendo Banco Master, Alexandre de Moraes e Galípolo, o enquadramento rapidamente escorrega para o duelo moral. Quem abusou, quem exagerou, quem está se protegendo. A engrenagem estrutural some de cena. E o benefício do sigilo da fonte, voz off impera.

Esse enquadramento é parte do jogo. Ele serve a interesses de classe bastante claros e blinda, quem ontem estava na fogueira. Ao reduzir uma articulação profunda entre finanças, Estado e poder institucional a um conflito entre indivíduos, a mídia preserva o essencial: a normalidade do sistema. Critica-se o excesso, o desvio, o erro de conduta — nunca o arranjo que torna tudo isso possível e recorrente. Aliás, pra ser direto, faz parte do arranjo.

E há um efeito colateral nada desprezível nessa história especifica: colocar Alexandre de Moraes no olho do furacão é um presente político para o bolsonarismo. Um natal feliz.  A extrema direita ganha, de bandeja, a comenda da perseguição personalizada, do inimigo encarnado, do juiz que virou personagem. A mídia ganha audiência, o conflito rende manchete, e a crise segue sendo administrada. No meio disso, o jogo grande agradece, pois ganha tempo e respiro: o debate gira, faz barulho, mas raramente encosta onde realmente dói.

Entrar nisso como torcida é uma roubada. Especialmente para a esquerda. Comprar a lógica de mocinhos e bandidos nesse momento é aceitar o enquadramento que interessa à mídia e, por tabela, à direita. Lembrando que a mídia tem lado. O conflito real não está no personagem que hoje ocupa o centro da cena, mas no arranjo que permite que esses episódios se repitam como regra. Transformar isso em disputa de arquibancada só ajuda a deslocar o debate para onde ele fica inofensivo: o terreno da paixão, da indignação seletiva e da personalização. A crise é estrutural. Tratar como novela é trabalhar contra si mesmo.

 

Nenhum comentário: