Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO
Em evento recente relatado pelo "Financial Times", Martin Wolf dedicou-se, como vêm fazendo muitos de seus colegas, a pregar humildade aos economistas, repetindo a indagação da própria rainha Elisabeth II sobre a falha dos profissionais da área em antecipar a crise que se acercava (não obstante dar o devido crédito a alguns que sim advertiram para o perigo ou mesmo a fatalidade de algo catastrófico à frente). Os comentários de Wolf suscitam antes de mais nada a questão da competência dos economistas, particularmente dos que trabalham como especialistas nos problemas financeiros mais diretamente relevantes para a crise, embora sua avaliação da limitada capacidade de prevê-la destaque justamente a fragmentação das áreas de trabalho e a falta de uma visão apropriadamente integrada. Seja como for, o problema envolvido é o de uma boa ciência econômica, capaz de pesquisar e apreender com acuidade fenômenos que se manifestam em regularidades "objetivas" que se oferecem como tal aos instrumentos científicos dos economistas profissionais.
Mas há um outro aspecto, ilustrado com força singular por algo que a passagem que se desenrola do tsunami da crise acaba de revelar: a gigantesca fraude montada por Bernard Madoff (o canalha do ano, segundo "The Economist"), ninguém menos que o ex-presidente de uma instituição da importância da bolsa de tecnologia Nasdaq. Se há aqui uma questão de pesquisa e apuração de fatos, ela assume sobretudo, ao menos de imediato, a face da investigação policial ou detetivesca, onde se trata de desvendar e expor algo que os agentes envolvidos tratam deliberadamente de ocultar. E é interessante que o escândalo da fraude de Madoff surja simultaneamente com as revelações de corrupção política envolvendo Rod Blagojevich, o governador de Illinois, no quem-dá-mais pelo cargo deixado vago no Senado estadunidense pelo presidente eleito Barack Obama.
Naturalmente, olhadas as coisas de modo um pouco mais atento, também fraude e corrupção são questões relevantes - e crucialmente relevantes - para uma ciência da economia e da política. Elas remetem a indagações de pelo menos dois tipos. Em primeiro lugar, até onde contar, nos postulados sobre os quais se erigirá o trabalho de pesquisa empírica e de eventual diagnóstico de situações concretas, quer com a operação de normas e valores solidários, quer, "realisticamente", com o egoísmo e a busca da interesse próprio, ou até o valor como tal da autonomia e a necessidade de traduzir-se ele mesmo em normas adequadas. Em segundo lugar, se se supõe que o objetivo maior seja alcançar uma "cultura" em que se realize o equilíbrio aí sugerido, no qual normas democráticas e pluralistas temperem com princípios solidários a busca autônoma do interesse próprio, em que medida apostar ou no desenvolvimento e no amadurecimento "espontâneos" ou naturais do processo cultural ou, diversamente, no papel de "artificiais" instrumentos institucional-legais (no Estado, na fiscalização, na polícia) que venham a condicionar as expectativas dos agentes e pressioná-los diretamente a determinadas formas de comportamento.
A ênfase unilateral na idéia de uma cultura de solidariedade e convergência acabou produzindo no plano da política, perversamente, certa concepção cínica da democracia como credulidade ou ingenuidade - coisa de trouxas ou otários, o que, segundo alguns, explicaria que, na escala planetária, a democracia viesse a ter melhores condições de florescer à medida que nos deslocamos para o norte e nos afastamos de gente "esperta" como, por exemplo, nós latino-americanos. Sem falar do norte como o espaço de um capitalismo "racional" e regrado, em contraposição ao nosso capitalismo "selvagem" e aquisitivo.
Claro, a visão especialmente vívida de agora de fraudadores e corruptos a operar no centro democrático do capitalismo internacional ajuda a pôr de lado essa geografia simplista da racionalidade econômica e da democracia. Mas merece destaque algo que vai em direção diferente: que os avanços mais promissores no terreno relevante das ciências sociais em geral (naturalmente, com contribuição decisiva do "norte") levem à revisão de postulados conduzida de maneira tal que o "realismo" vem a comportar não só a ênfase na idéia de interesse, tomada cruamente como envolvendo o ânimo de trapaça, mas também a ligação das velhas abstrações da ciência econômica com a atenção para a sociedade e a política, e naturalmente sua cultura e suas instituições, bem como com o recurso a modelos do comportamento humano de maior complexidade, em que o ânimo egoísta e trapaceiro é somente um traço.
De todo modo, não chega a ser de todo surpreendente que uma cientista política estadunidense, Susanne Lohmann, escrevendo em 2005 sobre política monetária para um volume destinado a explorar o "estado da arte" justamente na fronteira entre economia e política (B. Weingast e D. Wittman, "The Oxford Handbook of Political Economy", 2006), tenha podido, de um lado, apontar fatos como a contaminação até da apropriação de recursos feita em nome da segurança nacional por ocasião do 11 de setembro pela política clientelista atenta aos "interesses especiais" - e, de outro lado, chamar a atenção, sem embargo de elogios ao Fed, para a precariedade dos instrumentos institucionais disponíveis para lidar, entre outras ocorrências possíveis, com as fatais "crises financeiras internacionais vindouras", ou "com contigências imprevistas extremas na escala, digamos, da Grande Depressão".
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
DEU NO VALOR ECONÔMICO
Em evento recente relatado pelo "Financial Times", Martin Wolf dedicou-se, como vêm fazendo muitos de seus colegas, a pregar humildade aos economistas, repetindo a indagação da própria rainha Elisabeth II sobre a falha dos profissionais da área em antecipar a crise que se acercava (não obstante dar o devido crédito a alguns que sim advertiram para o perigo ou mesmo a fatalidade de algo catastrófico à frente). Os comentários de Wolf suscitam antes de mais nada a questão da competência dos economistas, particularmente dos que trabalham como especialistas nos problemas financeiros mais diretamente relevantes para a crise, embora sua avaliação da limitada capacidade de prevê-la destaque justamente a fragmentação das áreas de trabalho e a falta de uma visão apropriadamente integrada. Seja como for, o problema envolvido é o de uma boa ciência econômica, capaz de pesquisar e apreender com acuidade fenômenos que se manifestam em regularidades "objetivas" que se oferecem como tal aos instrumentos científicos dos economistas profissionais.
Mas há um outro aspecto, ilustrado com força singular por algo que a passagem que se desenrola do tsunami da crise acaba de revelar: a gigantesca fraude montada por Bernard Madoff (o canalha do ano, segundo "The Economist"), ninguém menos que o ex-presidente de uma instituição da importância da bolsa de tecnologia Nasdaq. Se há aqui uma questão de pesquisa e apuração de fatos, ela assume sobretudo, ao menos de imediato, a face da investigação policial ou detetivesca, onde se trata de desvendar e expor algo que os agentes envolvidos tratam deliberadamente de ocultar. E é interessante que o escândalo da fraude de Madoff surja simultaneamente com as revelações de corrupção política envolvendo Rod Blagojevich, o governador de Illinois, no quem-dá-mais pelo cargo deixado vago no Senado estadunidense pelo presidente eleito Barack Obama.
Naturalmente, olhadas as coisas de modo um pouco mais atento, também fraude e corrupção são questões relevantes - e crucialmente relevantes - para uma ciência da economia e da política. Elas remetem a indagações de pelo menos dois tipos. Em primeiro lugar, até onde contar, nos postulados sobre os quais se erigirá o trabalho de pesquisa empírica e de eventual diagnóstico de situações concretas, quer com a operação de normas e valores solidários, quer, "realisticamente", com o egoísmo e a busca da interesse próprio, ou até o valor como tal da autonomia e a necessidade de traduzir-se ele mesmo em normas adequadas. Em segundo lugar, se se supõe que o objetivo maior seja alcançar uma "cultura" em que se realize o equilíbrio aí sugerido, no qual normas democráticas e pluralistas temperem com princípios solidários a busca autônoma do interesse próprio, em que medida apostar ou no desenvolvimento e no amadurecimento "espontâneos" ou naturais do processo cultural ou, diversamente, no papel de "artificiais" instrumentos institucional-legais (no Estado, na fiscalização, na polícia) que venham a condicionar as expectativas dos agentes e pressioná-los diretamente a determinadas formas de comportamento.
A ênfase unilateral na idéia de uma cultura de solidariedade e convergência acabou produzindo no plano da política, perversamente, certa concepção cínica da democracia como credulidade ou ingenuidade - coisa de trouxas ou otários, o que, segundo alguns, explicaria que, na escala planetária, a democracia viesse a ter melhores condições de florescer à medida que nos deslocamos para o norte e nos afastamos de gente "esperta" como, por exemplo, nós latino-americanos. Sem falar do norte como o espaço de um capitalismo "racional" e regrado, em contraposição ao nosso capitalismo "selvagem" e aquisitivo.
Claro, a visão especialmente vívida de agora de fraudadores e corruptos a operar no centro democrático do capitalismo internacional ajuda a pôr de lado essa geografia simplista da racionalidade econômica e da democracia. Mas merece destaque algo que vai em direção diferente: que os avanços mais promissores no terreno relevante das ciências sociais em geral (naturalmente, com contribuição decisiva do "norte") levem à revisão de postulados conduzida de maneira tal que o "realismo" vem a comportar não só a ênfase na idéia de interesse, tomada cruamente como envolvendo o ânimo de trapaça, mas também a ligação das velhas abstrações da ciência econômica com a atenção para a sociedade e a política, e naturalmente sua cultura e suas instituições, bem como com o recurso a modelos do comportamento humano de maior complexidade, em que o ânimo egoísta e trapaceiro é somente um traço.
De todo modo, não chega a ser de todo surpreendente que uma cientista política estadunidense, Susanne Lohmann, escrevendo em 2005 sobre política monetária para um volume destinado a explorar o "estado da arte" justamente na fronteira entre economia e política (B. Weingast e D. Wittman, "The Oxford Handbook of Political Economy", 2006), tenha podido, de um lado, apontar fatos como a contaminação até da apropriação de recursos feita em nome da segurança nacional por ocasião do 11 de setembro pela política clientelista atenta aos "interesses especiais" - e, de outro lado, chamar a atenção, sem embargo de elogios ao Fed, para a precariedade dos instrumentos institucionais disponíveis para lidar, entre outras ocorrências possíveis, com as fatais "crises financeiras internacionais vindouras", ou "com contigências imprevistas extremas na escala, digamos, da Grande Depressão".
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
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