No domingo, 20 de setembro, Vinicius Torres Freire publicou um artigo curioso em sua coluna do caderno "Dinheiro" da "Folha de S. Paulo" ("Paz social: o povo é barato"). Avaliando os dados da Pnad do IBGE, Freire salienta, em contraste com certa excitação resultante de dados anteriores sobre a redução da desigualdade de renda, a "letargia" que seria agora produzida pela "mediocridade sustentável" que estaríamos experimentando ("a isto chegamos"...), consequência de um "pacto social" precário, "nada radical", na verdade um "sossega leão popular": "partidos políticos e movimentos sociais não se interessam em produzir mudança de monta - ou não têm motivos ou capacidade para tanto". E constata, desalentado, que os governos de FHC e Lula foram dos melhores da nossa história - "mesmo com seus defeitos repulsivos"...
Contraposta à desqualificação da política como tal que vemos frequentemente na imprensa, a perspectiva de Freire tem talvez a peculiaridade de que não se trata de apontar política corrupta, sem mais, mas de demandar desenvolvimento social: presumivelmente, um pacto social autêntico e apropriadamente radical. É revelador que Freire não deixe de pagar tributo a um moralismo antipolítico de alcance mais amplo: se se vai falar bem de governos recentes, "dos melhores de nossa história", é preciso advertir para seu lado "repulsivo", nada menos. Nas nossas condições gerais, há talvez algo de saudável em que esse moralismo ganhe um conteúdo especificamente social. Mas qual é mesmo o alcance da denúncia, o que é que se pretende por no lugar de governos repulsivos em que as coisas, bem ou mal (mediocremente), avançam e os avanços se tornam sustentáveis? Qual é mesmo o radicalismo que se deseja?
A indagação remete ao passado recente de um PT de retórica radical em que a expressão "socialdemocracia" era anátema (socialdemocracia que, naturalmente, sempre recebeu o mesmo tipo de crítica dos adeptos de um socialismo revolucionário). Ou permite lembrar que um programa como o Bolsa Família, de clara relevância nos avanços medíocres, foi, e ainda é, objeto de críticas ferozes, não obstante o processo político-eleitoral da democracia ter acabado por fazer dele algo dificil de remover da agenda de qualquer governo que venhamos a ter proximamente. Nessas condições, até que ponto, em vez de denunciar, não caberá festejar, com realismo e talvez certa dose de ironia amarga, a própria "mediocridade" que tanto desgosta a Freire?
Com um pequeno artifício, a perspectiva de Freire pode ser aproximada da visão elitista de nossas dificuldades atuais no campo das relações entre ética e política que as enxerga como decorrência da democratização da sociedade brasileira. Cento e trinta milhões de eleitores num país desigual significam peso político decisivo para os menos iguais e, supõe-se, correspondente deterioração intelectual e ética na qualidade da representação política. Mas, à parte as muitas fantasias sobre a qualidade intelectual e ética de nossa velha representação oligárquica, é clara a distorção envolvida em omitir, a propósito das nossas ruindades ético-políticas de hoje, a longa tradição de estado cartorial, clientelismo e quejandos que vicejava como parte da política oligárquica (e cujos mecanismos subsistem e moldam de muitas formas o presente) e destacar, ao revés, a democratização que solapa essa política. Naturalmente, avaliações como a de Vinicius Torres Freire reclamam avanços que se opõem ao elitismo; mas compartilham com a leitura elitista da democracia política em expansão e seus problemas a deficiência da desatenção para os pesados traços estruturais negativos do ponto de partida e os difíceis constrangimentos impostos ao jogo político como inevitável instrumento de avanços efetivos.
Felizmente, uma linha de trabalhos recentes no estudo da política, que alguns designam como "novo estruturalismo", vem retomando e refinando velhos postulados de maneira que se tem mostrado fecunda. Como apresentado sinteticamente em ensaio que aqui citei há tempos ("Democracy and Capitalism", de Torben Iversen), ela articula as variadas feições assumidas pelo próprio capitalismo como tal a subespécies de democracia e às interdependências e complementaridades institucionais em que se traduzem. A conformação do espaço de construção institucional aparece aí, em ampla medida, como dependente de condições estruturais "pré-estratégicas" (ou pré-políticas) e dos interesses que se associam com elas. Achados particulares de especial relevância para as verificações da Pnad e as insatisfação ao estilo de Vinicius Torres Freire dizem respeito ao papel da classe média e de sua eventual expansão. Constata-se, na síntese de Iversen, que o grau de desigualdade e o tamanho da classe média moldam de maneira poderosa os incentivos dos agentes políticos ao compromisso: "Uma classe média de grandes proporções serve essencialmente como um amortecedor, sob a democracia, contra demandas radicais por redistribuição". Claro, nas circunstâncias do nosso fosso social, a expansão da classe média que os dados apontam, ainda se tomados com todas as reservas, redunda por si só em redistribuição importante.
Não creio que mesmo o ânimo crítico ao estilo de Freire se dispusesse a incluir entre as razões para objetar ao novo "conservadorismo fernandino-luliano" a de que, ao permitir precariamente a expansão da classe média, ele bloqueia as demandas mais radicais.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
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