As reuniões da madrugada de 25 de novembro em Genebra, entre o chamado P5+1 (os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU mais a Alemanha) e o Irã, para a conclusão de um acordo sobre o programa nuclear iraniano ainda darão muito o que falar. O entendimento alcançado é frágil e ambíguo. Na verdade, limita-se ao congelamento por seis meses de atividades de enriquecimento de urânio, ante um alívio parcial nas sanções impostas ao Irã, num montante de cerca de US$ 4,2 bilhões por mês.
A diferença entre o êxito e o fracasso dependerá, entre outras condições, da capacidade de operacionalizar cláusulas complexas de verificação pela Agência Internacional de Energia Atômica. O objetivo da moratória é criar as condições para a negociação de um acordo mais abrangente, capaz de impedir o acesso do Irã à arma nuclear. Não obstante as dificuldades à frente, que são muitas, o plano aprovado sinaliza um novo caminho. Se tiver êxito, mais do que um simples entendimento tópico com o Irã sobre a extensão do seu programa nuclear, poderá representar úm passo significativo para a reestruturação da governança mundial, sob a égide de uma nova hegemonia norte-americana.
O acordo com o Irã é a reafirmação do multilateralismo e da ONU. É o fortalecimento do regime internacional de não proliferação nuclear, que já parecia fadado ao fracasso. É a fixação de critérios objetivos, quantificáveis e verificáveis para o exercício do direito ao enriquecimento de urânio para fins pacíficos e, ao mesmo tempo, o fechamento da porta - que a índia foi a última a transpor - para o acesso consentido ao restrito clube dos detentores da arma nuclear. Uma vez estabelecidos, os novos parâmetros tenderão a estender-se a todos os países que buscam dominar o ciclo da tecnologia nuclear, o Brasil incluído.
O palco para a negociação foi a ONU. Foram as sanções adotadas pelo Conselho de Segurança que levaram o Irã à mesa da negociação. Mas se a moldura é a da ONU, não é necessariamente a de um Conselho de Segurança reformado, como temos legitimamente defendido, e sim a de um arranjo informal P5+1, concebido para incluir a Alemanha. A reformado Conselho de Segurança pode, assim, já estar em curso, de modo informal, tal como tem ocorrido com a constituição de diretórios ad hoc, em outros elos da nova governança mundial.
Ao unilateralismo de George W. Bush seguiu-se o multilateralismo de Barack Obama. Ade-cisão solitária pelo recurso à força cedeulugar auma paciente ourivesaria política, ao diálogo e à negociação, com aliados e adversários. O novo não está na defesa retórica do multilateralismo, mas no compromisso de respeitá-lo e na demonstração de que pode funcionar. Assim, o desenho de uma nova governança mundial é ao mesmo tempo a reconstrução da hegemonia norte-americana, abalada pela crise econômica e pela desastrada política externa de Bush. Os contornos da nova hegemonia afirmam-se, com mais nitidez, no momento em que parece não haver candidato cóm condições ou com vontade para disputá-la.
A China segue o script da emergência pacífica, na economia antes, na política depois. Essa visão, que se tomou a doutrina oficial da diplomacia chinesa, ajudou a abafar os ruídos provocados pelos deslocamentos que a China continua a introduzir na economia mundial. Favoreceu o reconhecimento da necessidade de um novo tipo de relacionamento entre grandes potências, consagrado pelo encontro Xi Jinping-Obama, de junho passado. Beijing apoia o fortalecimento do regime de não proliferação nuclear, mas de maneira discreta. Joga ao mesmo tempo a carta do Conselho de Segurança e a dos Brics. Mas os seus interesses estratégicos estão mais na mesa da negociação P5+1 do que nas cúpulas dos Brics.
A Rússia teve a sua visibilidade restaurada, ainda que temporariamente, pela contribuição que deu ao compromisso da eliminação das armas químicas na Síria. Mas, tanto quanto a China, não tem interesse no descarrilamento do processo de não proliferação, que preserva o seu papel privilegiado de potência nuclear.
A Europa compartilha a preocupação com o eventual acesso do Irã ao armamento nuclear e não teve hesitação em conceder aos Estados Unidos a liderança no processo, até mesmo simbolicamente, pois foi Obama que anunciou os termos do novo acordo. A Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento, apesar das dificuldades inerentes a um projeto tão ambicioso, explicita a vontade de ambos os lados do Atlântico de partilhar uma mesma visão estratégica e construir uma poderosa aliança econômica neste cenário em profunda transformação.
O deslocamento do eixo estratégico do Oriente Médio para a Asia, do Atlântico para o Pacífico, sinaliza a sintonia da diplomacia norte-americana com as novas realidades econômicas e geopolíticas do mundo global. E o reconhecimento de que alguns conflitos regionais terão uma duração mais longa que o esperado e, exceto no caso do Irã, não afetam, necessariamente, interesses estratégicos dos Estados Unidos. A prioridade para a Ásia já é uma realidade no plano militar e um projeto em construção no plano econômico, pela via de várias parcerias transpacíficas. A nova hegemonia está, por fim, lastreada pela retomada da economia, sob o impulso da revolução do gás de xisto, que não apenas reduz a dependência da energia importada, mas estimula a reindustrialização do país.
É bem verdade que a formação de um condomínio global ampliado, com o ingresso da China e, em certa medida, de outros países emergentes, implica objetivamente uma perda do poder relativo dos Estados Unidos. Mas também é verdade que o desenho multipolar em construção reserva à potência norte-americana a posição de um polo central e hegemônico da nova ordem.
Fonte: O Estado de S. Paulo
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