"Meu papel é reviver o papel histórico do Ministério da Justiça como interlocutor prioritário com o Judiciário"
"Esses vazamentos não constroem paz social. Ao contrário, acerbam o ódio e o preconceito"
Por Murillo Camarotto, Bruno Peres e Raymundo Costa | Valor Econômico
BRASÍLIA - No comando do Ministério da Justiça há menos de um mês, Torquato Jardim questiona a relação custo-benefício das delações premiadas usadas em larga escala nos últimos anos. Questionado sobre os benefícios do uso do instituto, ele indaga: "Qual o custo? Desfazer a classe política?".
Em entrevista ao Valor, Torquato faz duras críticas à atuação do ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), no episódio que envolveu o presidente Michel Temer e o empresário Joesley Batista. Para o ministro, Fachin não poderia ter dado andamento ao inquérito antes da perícia no áudio que captou a conversa entre Temer e o delator.
"Que o Ministério Público tenha trazido [a denúncia], tudo bem. Mas o magistrado poderia ter refletido", alertou o ministro. "E se vem agora um laudo, por hipótese, desqualificando juridicamente [o áudio]? Indicadas as falhas, pode levar a outra configuração jurídica. Mas o dano político já está feito", ele alerta.
Torquato classificou como "razoável" a intenção do Ministério Público em distinguir a prática de caixa dois dos crimes de corrupção e disse que o clima de polarização que tomou o país já está prejudicando as reformas econômicas. No caso da Previdência, confirma que as concessões já feitas pelo governo vão exigir que uma nova reforma seja feita já pelo próximo presidente.
A seguir, os principais trechos da entrevista ao Valor:
Valor: Entregue na segunda-feira ao STF, o relatório do inquérito da Polícia Federal que envolve o presidente Temer foi conclusivo para a prática de corrupção passiva. A situação do presidente ficou mais delicada depois disso?
Torquato Jardim: O vocábulo "conclusivo" é seu, não do relatório. O relatório é formalmente parcial com as informações até agora possíveis. Pede-se mais cinco dias de prazo para concluir o parecer. Como o relatório é entregue ao Poder Judiciário e eu não sou advogado na causa, então eu sei apenas o que vocês sabem. Sem qualificativo, o relatório é parcial, não é conclusivo.
Valor: Mas não prejudica mais a imagem do presidente?
Torquato: Política é percepção no primeiro momento. Então é preciso esclarecer os fatos, conhecer os fatos. Primeiro, conhecer o relatório, o advogado ter acesso, poder responder a todas as questões e esclarecer os fatos.
Valor: As denúncias contra o presidente o afetam mais do que as reformas consideradas impopulares?
Torquato: Não, não. Há um lado positivo, que vocês mesmos sempre destacaram, é muito importante: as relações com o Congresso não estão prejudicadas. Isso é o grande triunfo do governo. Todas as votações estão passando. Esse que é o triunfo central.
Valor: Desde que o senhor assumiu a pasta, há três semanas, o presidente parece melhor amparado em um grupo de conselheiros na área jurídica. Ele partiu para um pouco mais de assertividade, reagiu com mais contundência. O senhor está participando muito dessas reuniões de aconselhamento. Qual o seu papel nesse governo?
Torquato: Meu papel é reviver o papel histórico do Ministério da Justiça como primeiro interlocutor ou interlocutor prioritário com o Judiciário, com o Ministério Público Federal. Por isso mesmo, eu visitei todos os presidentes de tribunais. Agora há uma dimensão nova, porque sou advogado em Brasília há 42 anos e há 42 anos eu frequento os tribunais. Fui professor de muitos advogados que estão aí, sou ex-professor de muitos procuradores da República, sou ex-aluno de procuradores da República. É essa bagagem que eu trouxe para essa convivência institucional enquanto ministro de Estado, com o Poder Judiciário e com o Ministério Público Federal. O diálogo é tranquilo, ameno, como sempre foi. Essa é uma construção de 42 anos. Não sou recém-chegado nesse papel. E é essa perspectiva que eu ofereço ao presidente da República.
Valor: O senhor disse que faria uma viagem com o diretor-geral da Polícia Federal e que poderia decidir sobre a necessidade de uma troca no comando. Isso avançou?
Torquato: Foi adiada [a viagem] por outras questões, mas agora eu vou fazer outra viagem.
Valor: Mas o senhor já chegou a se reunir com ele?
Torquato: Sim, muitas vezes.
Valor: E Leandro Daiello permanecerá à frente da Polícia Federal?
Torquato: Posso dizer que estamos estudando juntos o que será melhor para a corporação.
Valor: O que vai ser considerado pelo governo para decidir se substitui ou não o diretor da PF. Quais são as variáveis que vão pesar?
Torquato: São várias e são de utilização interna do governo neste momento. Direi quais são ao final do consenso.
Valor: O senhor concorda com as críticas feitas à PF, de espetacularização das operações e de excessos, sobretudo nessas operações que envolvem personagens políticos?
Torquato: Vejo a Policia Federal primeiro como uma entidade constitucional, com destinação constitucional, de segurança pública de um lado e de apoio operacional investigativo do Poder Judiciário, de outro. E ela se comporta nesse sentido histórico. É claro, aqui e ali, que pessoas têm uma conduta que não corresponde à história da corporação, mas isso faz parte das instituições.
Valor: A queixa-crime apresentada anteontem pelo presidente Michel Temer fala em coincidência de datas, se referindo à sessão de hoje do STF, que pode mudar a relatoria da Lava-Jato. O senhor avalia que os ministros do STF estejam suscetíveis a esse tipo de pressão?
Torquato: Não. A história do Supremo não é essa. Começa na década de 1890, quando concedia habeas corpus contra Floriano Peixoto a despeito de Exército na porta do tribunal.
Valor: O Ministério Público tem falado em fazer distinção entre denúncias do que foi caixa dois "puro" e do que foi crime comum. Vimos até aqui uma grande mistura. Já não acabaram com todas as biografias?
Torquato: Esse juízo é do Ministério Público.
Valor: O senhor, professor de direito constitucional, como avalia?
Torquato: Sei que é uma questão do Ministério Público. A ser verdade o que está na imprensa, é uma solução razoável. Traz para a interpretação do direito um fato da vida. Direito não é só letra do direito. É norma escrita, espírito e prática. Os três compõem a compreensão do caso concreto. Se estiver correto o noticiário da imprensa, é trazer para dentro da compreensão do direito penal um fato da vida, que era o sistema de financiamento de campanhas eleitorais. Se o candidato, eleito ou não, deixa claro que recebeu a doação pelos meios que a lei exige. Se o cheque nominal, o depósito em conta certa, foi depositado, se está na prestação de contas. A origem dos recursos por trás do cheque, é essa a nova interpretação, é de quem doou a responsabilidade.
Valor: Mas vai ser muito difícil fazer o discernimento, não?
Torquato: Quem vai ter que desfazer esse novelo é o Ministério Público. A proposta, como está na imprensa, é muito interessante, porque traz para a compreensão do direito um fato da vida. Se recebeu o dinheiro na forma da lei, colocou na conta bancária obrigatória e fez a prestação de contas, por que vai ser responsável pela origem eventualmente ilícita do dinheiro? Essa é uma questão. Outra questão: Se ele sabe a origem. Aí é uma interrogação a ser investigada caso a caso. Essa origem é lavagem de dinheiro, é caixa dois, é propina? Isso vai ter que ser investigado. É por isso que a própria imprensa está noticiando que menos de 40 parlamentares seriam aproveitados nesse critério, o que mostra uma boa ponderação do Ministério Público.
Valor: Mas não é tarde para essa ponderação? As pessoas não foram condenadas pela opinião pública?
Torquato: Que eu saiba, são processos ainda não concluídos. Mas as pessoas já foram punidas publicamente.
Valor: O senhor avalia que essa ideia de criar um caixa dois leve, puro, não embute uma tentativa de dividir a Câmara, de conquistar um espaço que só o presidente Temer tem entre os deputados?
Torquato: Eu li essa perspectiva em alguma coluna, mas não vou comentar especulação.
Valor: O senhor acredita que o Ministério Público se precipitou no tratamento da questão da J&F e do Joesley com o presidente Temer?
Torquato: Eu estaria comentando caso judicial concreto sem ser advogado nos autos.
Valor: Nem em tese?
Torquato: Essa cadeira não permite tese. Acho o seguinte: Essa entrevista [de Joesley à revista "Época"] se põe em um momento muito curioso, porque até ontem seria muito mais fácil. Saiu a história desse relatório [do inquérito da PF], que é parcial. Aí vem a ilação dos interessados em afastar o presidente do que viria nos outros dois inquéritos que não vieram ainda. Segundo: a Polícia Federal pediu mais cinco dias para concluir os requisitos. Terceiro: não temos e não sabemos a data do laudo técnico do INC [Instituto Nacional de Criminalística] sobre essa fita. Aí os especialistas que já falaram sobre ela vão ter que rever suas opiniões. Veja quanta coisa pode acontecer. Se for cancelada a prisão da Andrea Neves, se o plenário do Supremo decidir que o ministro Fachin não é relator da JBS, ou que a homologação [do acordo da JBS] é do plenário. Veja quanta coisa pode acontecer.
Valor: Por isso três semanas parecem três anos no cargo?
Torquato: Pois é. Olha, faz muito tempo que não trabalho 14, 15 horas por dia.
Valor: A possibilidade de alguém entrar, gravar o presidente da República e produzir uma prova contra ele é o fato mais forte de tudo o que estamos vivendo hoje?
Torquato: Para mim, o "turning point" não é esse. É fazer o uso dessa gravação sem a devida perícia. A pergunta que cabe é: "qualquer um de nós, cidadãos, gostaria de ser acusado dessa coisa tão íntima?". Você ser acusado com base em um documento que não foi periciado, de duvidosa legalidade? Na minha avaliação, foi esse o "turning point".
Valor: Mais grave do que a própria gravação do presidente?
Torquato: Eu acho. Que o Ministério Público tenha trazido, tudo bem. Mas o magistrado poderia ter refletido. E se vem agora um laudo, por hipótese, desqualificando juridicamente [o áudio]? Indicadas as falhas, pode levar a outra configuração jurídica. Mas o dano político está feito. Se vier esse laudo, pra mim o "turning point" foi a decisão de intimar o presidente a oferecer resposta em face a um documento não autenticado tecnicamente.
Valor: Mas o Ministério Público não se precipitou?
Torquato: Aí é o cacoete do advogado. Se há precipitação, é sempre do Judiciário. Seu papel final é justamente harmonizar e conter as partes do processo.
Valor: O Ministério Público foi criticado, inclusive pelo presidente, por conta dos benefícios oferecidos em troca desse acordo. O senhor avalia que somente o acordo da JBS teria sido desequilibrado ou os demais também sejam desproporcionais aos crimes cometidos?
Torquato: Não conheço o caso concreto. É preciso que cheguem em juízo e sejam julgados para que se possa fazer uma avaliação.
Valor: Mas os benefícios oferecidos aos delatores são públicos.
Torquato: São, mas eu não sei qual é a troca. O problema da delação é o seguinte: o "plea bargain", ou a barganha de confissão, é um instituto típico do "common law" [direito comum, usado nos Estados Unidos], de um direito capitalista, compreendido como custo-benefício, no qual o resultado mais produtivo significa menos tempo e menos custo. Então, o "plea bargain" é rápido, não leva três anos. Quando vem a delação para o Brasil, você mistura leis de vários países e faz o "direito ibérico" e fica uma mistura de institutos. Como a essência é o melhor resultado em menor tempo, se você tem cinco acusações, o sujeito confessa uma e as outras quatro ficam pra trás. Aqui querem barganhar nas cinco, aí leva esse tempo todo.
Valor: Isso também ocorre com os acordos de leniência.
Torquato: Exatamente. Vivi isso no Ministério da Transparência. É a confusão conceitual de como aplicar o instituto [da delação premiada] aqui. Na nossa formação ética romano-cristã, você quer castigar o pecador. Você confessa tudo para o padre e tem a penitência para todos os pecados. Você não confessa o menor e descarta os demais.
Valor: Mas, grosso modo, valeram a pena os resultados obtidos até agora face as delações premiadas que foram feitas?
Torquato: Mas o que você quer dizer com "valeu a pena"?
Valor: As descobertas feitas.
Torquato: Qual o custo? Desfazer a classe política? Eu sou de uma geração que passou a infância e a juventude ouvindo um certo partido político, as Forças Armadas e a Igreja Católica destruindo a classe política. Chegou 1954, deu revolta armada contra o Juscelino [Kubitschek]; chegou 1961 eu testemunhei o Exército passando a 300 metros da minha casa; e chegou 1964 e tudo que aconteceu no pós-64. E aí, o que se construiu? "Inegável avanço econômico", disse Tancredo Neves. Mas as instituições democráticas não foram reconstruídas. Então, a pergunta que coloco é: desfazer, como está sendo desfeita, a classe política, constrói uma democracia?
Valor: Devolvo a pergunta?
Torquato: Vamos olhar pra fora. Eu já trabalhei em 32 países em todos os continentes. Nenhum país jamais revelou suas vísceras como o Brasil está fazendo hoje. A Itália, quase. O que aconteceu na Itália? Desapareceram os quatro partidos políticos históricos e surgiu quem?
Valor: Silvio Berlusconi.
Torquato: Queremos Berlusconi? Quase eu falo os nomes de dois ou três, mas não vou falar...
Valor: O senhor acha que estamos passando por procedimentos "macartistas", onde o sujeito é punido antes do caso chegar ao juiz?
Torquato: Quem de nós gostaria de ser condenado no tribunal da opinião pública antes de conhecer a prova e fazer a defesa? Esses vazamentos não constroem paz social. Ao contrário, acerbam o ódio e o preconceito. Nenhuma democracia foi construída com tamanho antagonismo. Esses bolsões de insegurança tornam ineficaz o processo democrático. A democracia no Brasil começa em 1988. Entre 1946 e 1964 era muito incipiente e morreu antes de atingir a maioridade. O Brasil nunca teve uma Constituição que durou mais de 30 anos. Os agentes públicos estão perdendo de vista a união social.
Valor: O que esse governo pode fazer pela pacificação?
Torquato: Eu me engajei no discurso de posse. Cada um no seu papel. Imagino as autoridades da área econômica terem que propor uma modernização face a um ódio desses. Em tese, se a reforma trabalhista se fizesse num processo sem antagonismo, como seria? E a reforma da Previdência, que é uma obviedade aritmética? O que está sendo concedido para passar o mínimo, o próximo presidente vai ter que fazer outra reforma da Previdência, não pode esperar dez anos. Meus filhos não terão previdência, terão que se virar.
Valor: A atitude da JBS de delatar o presidente vai dificultar a relação da empresa com o governo federal para, por exemplo, voltar a acessar financiamento público?
Torquato: Vai prejudicar todo o sistema de leniência. Todos os acordos vão passar por uma "lupa" de controle muito maior.
Valor: As críticas ao trabalho do Ministério Público ajudam a explicar essa intenção do governo de não respeitar a lista tríplice da associação de procuradores para a escolha do novo titular da PGR?
Torquato: Não há relação de causa e efeito. Quando comecei a falar sobre esse tema, já estava na mídia a manifestação dos outros três ramos do Ministério Público da União sobre sua participação no processo eleitoral interno. Quando fiz o comentário, minha reflexão foi de analisar como virá a lista [tríplice, da Associação Nacional dos Procuradores da República], porque outros estão querendo participar. Hoje é exclusivo dos associados da ANPR. Procurador que não for da ANPR não vota. É uma associação civil e um problema interno. Fiz apenas uma descrição dos fatos, sem me comprometer com algum lado.
Valor: Qual a sua avaliação sobre o trabalho de Rodrigo Janot?
Torquato: Historicamente, o Ministério Público era vinculado ao Executivo, nomeado pelo presidente e não entre procuradores de carreira. Em 1988, passou a ser um ente independente, mais livre. Então, eles perderam o sistema de freios e contrapesos e é aí que vem a grande crítica. Ele não é Executivo, Legislativo nem Judiciário, ele é Ministério Público. Então falta essa definição constitucional. Na ausência dessa definição, os procuradores têm dificuldade de entender o seu papel.
Valor: O ex-deputado Rocha Loures fez seguidos pedidos de mudança no local de prisão. O senhor tem informações concretas sobre a situação de segurança dele?
Torquato: O que posso dizer é que na Penitenciária da Papuda [em Brasília] ele está em ala separada, muito mais segura e confortável do que na carceragem da Polícia Federal. Isso, eu digo, como instalação física. Mas se há alguma outra razão subjetiva para ele temer esse ou aquele lugar, isso eu não sei responder.
Nenhum comentário:
Postar um comentário