Disputa acirrada no Chile será decidida por tamanho da rejeição a retorno de ex-presidente
Janaína Figueiredo / O Globo
BUENOS AIRES - Desde o retorno da democracia, em 1990, nunca houve tanta incerteza em relação a uma eleição presidencial no Chile como existe hoje. Depois de um primeiro turno no qual todas as pesquisas erraram ao projetarem até mesmo um triunfo contundente do ex-presidente Sebastián Piñera (2010-2014), nos últimos dias ninguém se arriscou a cravar quem será, finalmente, o sucessor de Michelle Bachelet. Há pouco menos de um mês, Alejandro Guillier, o candidato apoiado pela chefe de Estado, obteve um magro desempenho no primeiro turno, superando por menos de dois pontos percentuais a grande revelação da campanha, a jornalista Beatriz Sánchez, da esquerdista Frente Ampla, a novidade política de 2017. Para tentar reverter sua desvantagem, a estratégia de Guillier — senador sem longa trajetória, carisma e base política — foi transformar a eleição num referendo sobre Piñera, dono de uma das maiores fortunas do Chile.
A jogada de Guillier poderia dar certo, já que a rejeição ao ex-presidente é alta, sobretudo na classe média. O candidato, que durante toda a campanha buscou mostrar-se como um outsider da política, espera captar a maioria dos votos anti-Piñera. Esse cenário é possível, mas implicaria problemas a curto prazo. Caso Guillier consiga passar dos 22,7% alcançados no primeiro turno (contra 36,7% do ex-presidente) e ultrapasse Piñera, muitos apontam semelhanças com a situação no Peru. O atual presidente, Pedro Pablo Kuczynski, atualmente mergulhado numa gravíssima crise política desencadeada por denúncias de recebimento de subornos pagos pela Odebrecht, venceu por representar o antifujimorismo. A tática foi efetiva mas, uma vez no poder, Kuczynski perdeu apoio e tornou-se um chefe de Estado fraco.
— O ex-presidente não tem boa imagem entre muitos chilenos, que o consideram pouco confiável e o veem como um empresário que só pensa em fazer negócios — comentou Marco Moreno, reitor da Faculdade de Governo da Universidade do Chile.
No primeiro turno, cerca de 55% dos chilenos votaram nos diferentes candidatos da centro-esquerda, o que obrigou Piñera a suavizar suas críticas ao atual governo. Pela primeira vez, o ex-chefe de Estado defendeu a educação gratuita, ciente de que esta conquista de Bachelet é considerada importantíssima pela maioria dos chilenos que optaram por candidatos comprometidos com o respeito e até mesmo o aprofundamento do legado da presidente. No último debate presidencial, foi notória a mudança de discurso de Piñera. O ex-presidente sabe que tem garantido o respaldo dos 7,8% dos eleitores que votaram no ex-candidato de direita José Antonio Kast. O desafio é cativar seguidores da ex-candidata democrata-cristã Carolica Goic (5,9%) e até mesmo do ex-socialista Marco Enríquez Ominami (5,7%). Para isso, Piñera chegou a propor mudanças no sistema previdenciário, hoje controlado por fundos privados de aposentadoria.
— Claro que o ex-presidente prega uma gratuidade da educação mais limitada e defende um Estado menos presente na economia do que Guillier, mas foram novidades que mostraram seu desespero — apontou Moreno.
Já Guillier precisa dos votos da Frente Ampla e, na opinião de Guillermo Holzmann, da Universidade do Chile, não era necessário que o candidato de centro-esquerda fizesse concessões de peso — como de fato não fez — ao novo fenômeno eleitoral chileno para apropriar-se de alguns de seus votos, “basta não ser Piñera”.
— Não acho que todos os votos de Sánchez passem para Guillier, apesar de a ex-candidata ter dito que votaria nele. Tem um setor da Frente Ampla que prefere que Piñera volte ao poder porque, sendo sua oposição, se fortalecerão e crescerão mais rápido — ampliou Holzmann.
FORTES DEMANDAS SOCIAIS À ESPERA DO VENCEDOR
A Frente Ampla pede gratuidade total da educação e perdão de 100% das dívidas dos estudantes. Guillier ofereceu cancelar entre 35% e 40% das dívidas e evitou falar em gratuidade universal. Já Piñera limitou-se a aceitar que apenas alguns setores tenham acesso à educação gratuita, principalmente os estudantes de carreiras técnicas. Não houve, portanto, apostas ousadas de nenhum dos dois. E isso explica, entre outras razões, o cenário incerto atual. Outro fator crucial na eleição de hoje é a participação. Quanto maior for a abstenção, que no primeiro turno chegou a 54% (o voto não é obrigatório), maiores serão as chances do ex-presidente.
Guillier não é o candidato dos sonhos de Bachelet nem da centro-esquerda chilena. O ex-jornalista foi, simplesmente, o que mais bem posicionou-se nas pesquisas na primeira etapa da campanha e, assim, desbancou figuras de proa da antiga Concertação entre socialistas e democratas cristãos, como o expresidente Ricardo Lagos (2000-2006). Se Guillier for derrotado, não significará apenas a volta de Piñera. Será, também, o golpe final na aliança de partidos que nasceu com a redemocratização. A derrota do ex-presidente abrirá espaço para uma reconstrução — difícil, mas possível.
Seja quem for, o próximo presidente deverá conviver com um Congresso fragmentado e heterogêneo, além de fortes demandas sociais, sobretudo de avanço e aprofundamento das reformas políticas e sociais.
— O Chile não está diante de um precipício, e sim de uma bifurcação — sintetiza Holzmann. — Se ganhar Guillier, teremos um governo mais progressista, que sairá do neoliberalismo e permitirá novas transformações. Com Piñera, o foco será crescimento, novos investimentos, mais comércio e fortalecimento do atual modelo econômico.
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