Apologia do abuso de poder || Editorial / O Estado de S. Paulo
Desde que o Congresso aprovou o projeto de lei que criminaliza o abuso de autoridade, tem havido uma saraivada de críticas afirmando que a nova lei seria revanchista, desequilibrada e perigosa para o bom funcionamento da Justiça. Tal oposição não apenas ignora o conteúdo do projeto de lei. As críticas ignoram o fato insofismável de que a nova lei tem uma característica única. É simplesmente impossível que ela seja interpretada enviesadamente, de forma a dificultar a ação dos juízes e procuradores, pela simples razão de que os intérpretes da nova lei serão os próprios juízes e os membros do Ministério Público.
Não faz sentido a alegação de que os crimes previstos na nova lei seriam muito abertos, dando margem a uma criminalização da atividade judicial. Em comparação com a legislação penal vigente, o projeto de lei do abuso de autoridade é bastante preciso. Houve muitas críticas, por exemplo, ao primeiro crime previsto na lei - “decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais” - como se fosse impossível detectar as situações de “manifesta desconformidade”.
Vale a pena refletir sobre tal argumentação. Quando se critica esse tipo penal - que é uma elementar medida de respeito à liberdade de todos os cidadãos, consequência direta de um Estado Democrático de Direito que zela pelas garantias individuais -, a rigor o que se está postulando é que nunca se poderia, com um mínimo de certeza, dizer que numa determinada situação o juiz não tem poderes para decretar a prisão de alguém. Tal crítica é uma insidiosa apologia do abuso de poder, ao afirmar que nunca se poderia detectar, com um mínimo de segurança, um caso de abuso.
Ou seja, o que essas críticas ao projeto de lei afirmam é que nunca uma prisão poderia ser classificada, sem margem de erro, de abusiva - o que é um evidente despautério. O poder do juiz tem limites e, ainda que esses limites em alguns casos não sejam uma linha exata, a margem de poder do juiz não é de um relativismo radical, como alguns pretendem. É parte do saber jurídico indispensável para o exercício da função jurisdicional conhecer os limites do poder.
A crítica ao projeto de lei ignora o fato de que será um juiz a julgar se houve abuso de autoridade na decretação de prisão. Não há risco de que ela seja utilizada para criminalizar a atividade honesta de juízes e promotores. O perigo real é o oposto, de não ser aplicada com o devido rigor.
Mais aberto e passível de interpretações abusivas é, por exemplo, o crime previsto no art. 331 do Código Penal - desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela. Continuamente, todo cidadão está sujeito a ser vítima de uma interpretação abusiva desse tipo penal, sendo, por exemplo, denunciado pelo crime de desacato numa situação de mero exercício da liberdade de expressão. Infelizmente, a esse respeito, não se veem muitos juízes e promotores defendendo uma interpretação mais segura e mais próxima ao texto da lei. E menos ainda protestando contra a própria lei, que pode colocar em risco a liberdade dos cidadãos.
Nas críticas ao projeto de lei sobre abuso de autoridade, observa-se um seletivo rigorismo. Os tipos penais seriam muito abertos, passíveis de más interpretações, expondo juízes e promotores a pressões ilegítimas. Mas não se vê tal rigor sendo aplicado, por exemplo, com o projeto das Dez Medidas Anticorrupção ou com o chamado Pacote Anticrime, proposto pelo ministro Sergio Moro. Fossem utilizados os mesmos pesos e as mesmas medidas, esses projetos - deliberadamente dúbios e amplos, que expõem os cidadãos aos mais diversos achaques - não ficariam em pé. Uma maior igualdade no tratamento da legislação penal e processual penal pode trazer mais racionalidade, equilíbrio e justiça para todo o sistema de Justiça.
O Legislativo foi cuidadoso com o projeto de lei do abuso de autoridade. “As condutas descritas nesta Lei constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal”, diz o art. 1.º. Ao ignorar o conteúdo aprovado e tecer críticas infundadas, o que se vê é a tentativa de manter a impunidade do abuso de autoridade. Tal desequilíbrio não cabe no Estado Democrático de Direito.
Onde há fumaça || Editorial / Folha de S. Paulo
Queimadas se alastram de modo alarmante; Bolsonaro lança teoria conspiratória
O negrume que tomou o céu de São Paulo em plena tarde de segunda (19) acabou, por vias oblíquas, chamando a atenção para queimadas que grassam em proporções alarmantes na Amazônia e nas fronteiras com Paraguai e Bolívia.
Embora a principal explicação para o fenômeno paulistano tenha sido a chegada de uma frente fria, meteorologistas apontaram também sua possível relação com o fogo em regiões distantes.
Se é difícil dimensionar a influência do segundo fator, não se questiona que o país tem vivido neste ano alta expressiva das queimadas.
Contaram-se 72.843 focos até 19 de agosto, um crescimento de 83% ante o mesmo período de 2018 e recorde desde 2013 para os primeiros oito meses do ano, segundo o Inpe.
A lista é encabeçada por Mato Grosso, seguido de Pará, Amazonas e Rondônia. Os biomas com mais casos são a floresta amazônica, com 52% do total de registros, e o cerrado, com 30%.
Também preocupante é a ocorrência das chamas em áreas protegidas. Somente nesta semana já se observaram 68 episódios dentro de terras indígenas e unidades de conservação estaduais e federais.
Lamentável, embora não surpreendente, foi a reação do presidente Jair Bolsonaro (PSL) aos dados. Não os contestou, mas tampouco perdeu a oportunidade de propagar teorias conspiratórias e vilipendiar inimigos imaginários.
Nesta quarta (21), disse que ONGs poderiam estar por trás das queimadas, com o objetivo de prejudicar a imagem de seu governo.
Raramente tais incêndios são naturais —mas não pelo motivo apresentado pela fantasia bolsonarista.
Mais comum é uma queima intencional, para livrar pastos de pragas, sair do controle e alcançar matas —isso quando o fogo não é usado para limpar áreas previamente desmatadas.
Exemplo eloquente desta última modalidade foi um certo “dia do fogo”, anunciado por fazendeiros do entorno da BR-163 no sudoeste do Pará, em 10 de agosto, sábado.
Principal cidade da região, Novo Progresso registrou 124 focos de incêndio naquela data, recorde do ano. No domingo, o número subiu para 203, atingindo áreas de conservação. O Ministério Público Estadual abriu investigação.
À diferença dos últimos anos, quando o Ibama manteve uma base de fiscalização em Novo Progresso durante o período seco, em 2019 a operação acabou cancelada devido à falta de apoio das administrações estadual e federal.
Nessa seara, como se vê, ONGs são desnecessárias para prejudicar a imagem do governo.
É inadmissível haver influência política no ex-Coaf || Editorial / O Globo
Permissão de quaisquer nomeações para a UIF facilita ingerências em um órgão vital do Estado
Jair Bolsonaro, repetindo outros candidatos em eleições de outrora, assumiu no palanque o papel do renovador de usos e costumes da tradicional política brasileira, em que há fortes traços de patrimonialismo e fisiologismo. E como ocorreu no passado, com oito meses de governo, o candidato eleito mostra facetas opostas às promessas de campanha.
Por ter sido integrante pouco relevante,por 28anos da bancada do baixo clero —quase um pleonasmo —, o ex-capitão pôde adotar o discurso contra a velha política como alguém distante dos compadrios que unem as cúpulas no poder.
Assumiu o estandarte anticorrupção da Lava-Jato e, para fixar a imagem de paladino dos bons modos na administração pública, conseguiu levar para a equipe, como forte ministro da Justiça e Segurança Pública, o juiz Sergio Moro, da Operação baseada em Curitiba.
Este início de mandato, porém, não tem sido compatível com aquela imagem
que Bolsonaro quis construir na campanha. O último ato desta desconstrução é a medida provisória que altera a estrutura de cargos do ex-Coaf, rebatizado de Unidade de Inteligência Financeira (UIF) e transferido para o Banco Central.
A mudança faz sentido. Até, como o próprio presidente justificou, para proteger de pressões políticas a atividade de fiscalização dos fluxos financeiros. É razoável não deixar a UIF no Ministério da Economia, nem fazê-la retornar à Justiça como reivindicou Moro, deixando-a na órbita de uma instituição absolutamente técnica.
Mas a MP surpreende ao quebrar a norma de que organismos do Banco Central são tocados por funcionários atuais do BC ou que já passaram pela instituição.
Definir que postos estratégicos na burocracia pública têm de ser preenchidos por funcionários de carreiras de Estado não pode ser confundido com corporativismo. É questão de segurança para a sociedade
Se a medida provisória vier a ser aprovada pelo Congresso sem emendas, poderão ser nomeados conselheiros da UIF pessoas sem qualquer histórico na atividade pública de controle, fiscalização do sistema financeiro e similar. Estará aberto espaço para indicações políticas, pondo-se em risco a confidencialidade dos dados do sistema financeiro, além de se colocar a UIF sob suspeição.
A MP está no contexto de ingerências do presidente na Polícia Federal e na Receita — nesta já houve a controvertida intervenção do inquérito Toffoli-Moraes, do Supremo.
No caso de interferências de Bolsonaro, há visível relação com investigações do ex-Coaf sobre movimentações bancárias do filho Flávio, quando era deputado estadual, e de auxiliares dele. Este mesmo caso levou Toffoli a rever o relacionamento operacional entre Coaf e Ministério Público, crucial na repressão a traficâncias financeiras.
Parece sob ameaça a independência de instituições-chave da República.
Dividido, Fed não aponta direção firme para os juros || Editorial / Valor Econômico
O Federal Reserve espreita o futuro sem segurança do rumo a tomar, como indica a ata da reunião de julho, quando a taxa de juros foi reduzida em 0,25 ponto percentual (para a faixa de 2% a 2,25%) e o banco sinalizou que a direção da política monetária era a de afrouxamento. Não houve consenso - dois participantes votaram pela manutenção do juro -, mas o espectro de opiniões foi amplo. A decisão de reduzir a taxa dos fed funds foi majoritária, mas havia quem propusesse corte bem maior, de 50 pontos básicos. O cenário da maioria, visto nos estritos termos da ata, porém, não indica que o banco irá muito longe na redução dos juros. Boa parte do Fed se inclina claramente por mais estímulos à economia.
Há dificuldades extraordinárias em discernir o futuro da economia e a carga de juros correspondente. Vários membros do Fomc julgaram que era preciso manter a taxa usando o mesmo cenário básico que à maioria recomendou o corte. "A economia real continua em boa forma, reforçada pela confiança dos consumidores, um mercado de trabalho forte, com baixo desemprego", registra a ata. Os defensores do imobilismo consideram as incertezas sobre o comportamento da economia mundial em geral e as incertezas do comércio em particular, mas julgam que estes riscos de certa forma diminuíram entre as duas reuniões do banco e que a manutenção da política monetária acabaria por levar a inflação à meta de 2%. Além disso, outros participantes da reunião apontaram que a mudança de direção do Fed, rumo a uma maior acomodação monetária "poderia ser mal interpretada como um sinal negativo sobre o estado da economia".
De outro lado, a favor de um duplo corte - 0,5 ponto - o argumento utilizado foi mais enfático. A inflação teimosamente baixa e sua "pouca sensibilidade" ao nível de atividade significa que uma economia bem mais forte do que a atual seria necessária para que o retorno da inflação à meta fosse acelerado. Logo, precisa de estímulos igualmente mais fortes.
Apesar das divergências, a avaliação do estado da economia do banco passa longe de uma recessão no médio prazo. Ao contrário, a projeção para o crescimento neste período, segundo a ata, é maior do que avaliado anteriormente, devido à perspectiva mais favorável para os preços das ações e juros menores. Mais: os riscos para a atividade econômica diminuíram, apesar de as incertezas sobre o comércio global - a guerra comercial de Trump, que não é mencionada - tenha pesado sobre os investimentos.
Ainda assim, a guerra comercial e a desaceleração do crescimento global foram avaliados como riscos adversos que "não se dissiparão logo". Esses fatores tendem a reduzir o crescimento da economia e postergar o cumprimento da meta de inflação. A redução dos investimentos e do ritmo da produção industrial tendem a desacelerar a economia americana mais do que o previsto e, nesse caso, a inflação demoraria bem mais para voltar aos 2%.
A inversão das curvas de juros dos títulos do Tesouro - os de longa duração, de 10 anos, apontando rendimentos inferiores aos de curto prazo, de 3 meses - aparece em dois trechos da ata, mas poucos membros do Fed parecem estar tão preocupados como os investidores sobre a recessão a caminho que os títulos sugerem. Os baixos rendimentos dos títulos do Tesouro trazem riscos antes à estabilidade financeira. O staff do Fed atribui ao baixo rendimento desses papéis a pressão de valorização dos ativos em vários mercados. A alavancagem das empresas não financeiras é alta e se constitui em um fator que "pode amplificar os choques nas empresas e na economia de maneira geral". Novos empréstimos para empresas com risco de crédito bateram recorde de alta. A vulnerabilidade financeira em geral é "moderada", enquanto que as condições de crédito para o consumo continuam "acomodativas".
A perspectiva do Fed, pela ata, continua bem longe do relativo pessimismo dos mercados. A redução dos juros foi considerada "um passo prudente no gerenciamento de risco". Não há sinal na ata de que o Fed vá estender muito o ciclo de redução dos juros enquanto a economia americana não der sinais claros de retração. Os vitupérios do presidente Donald Trump contra a política do Fed e suas insinuações de que pode partir para conceder mais estímulos fiscais só reforçam a cautela do banco em relação à redução dos juros - são motivos adicionais para não fazê-la com pressa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário