-Folha de S. Paulo
A teia de interesses comuns que enreda Brasil e Argentina é densa e não se limita ao comércio
Governantes podem fazer muitas coisas. Mas nem o mais poderoso autocrata consegue mudar seu país de lugar ou escolher os vizinhos. Por isso, considerações geopolíticas constituem um dado das relações internacionais, assim como o trato de cada nação com as que lhe são próximas representa uma dimensão crucial de sua diplomacia.
É tradição da política externa brasileira evitar conflitos com nossos dez vizinhos ou, quando se tornam inevitáveis, resolvê-los por meio da negociação.
O princípio da não-ingerência nos assuntos internos alheios regeu quase sempre o nosso relacionamento com os Estados que compartilham o espaço sul-americano. A retórica contida, a forma de expressão da ação diplomática voltada para a boa vizinhança.
Na semana passada, Bolsonaro e Guedes romperam a tradição. O presidente, fazendo declarações hostis ao peronismo, vitorioso por 15 pontos de vantagem nas primárias argentinas. E o ministro, no afã de acalmar o empresariado, afirmando que o Brasil não precisa da Argentina para sair do buraco econômico. Nesta semana, foi a vez do supérfluo chanceler Ernesto Araújo invocar o espectro da Venezuela em caso de vitória peronista definitiva.
Uma vez mais, a grosseria veio abraçada à ignorância dos fatos que governantes têm por obrigação conhecer. A teia de interesses comuns que enreda Brasil e Argentina não só é densa, como resulta de um longo processo pelo qual, nas palavras do embaixador Marcos Azambuja, os dois países passaram de inimigos a rivais, de rivais a aliados e de aliados a sócios.
Isso não se resume ao comércio, que fez da Argentina nosso terceiro parceiro e principal mercado para a indústria automobilística nacional. Envolve ainda investimentos produtivos de parte a parte —incluindo o setor de defesa—, proveitoso turismo, cooperação científica, militar e policial.
Foram enlaces importantes dessa tessitura o Acordo Tripartite Brasil-Argentina-Paraguai para o aproveitamento das hidrelétricas de Itaipu e Corpus, em 1979; o Acordo de Cooperação para o Desenvolvimento e a Aplicação dos Usos Pacíficos da Energia Nuclear de 1980, que levou, 11 anos depois, à criação da Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares; o apoio do Brasil à demanda argentina sobre as Ilhas Malvinas, em 1982; e, finalmente, o Tratado de Assunção, que criou o Mercosul, em 1991.
Além disso, Brasil e Argentina jogaram juntos, em muitos momentos, nas negociações agrícolas da OMC, no G20 e no Conselho de Segurança da ONU.
Relações desse quilate requerem respeito e abominam o xingatório.
*Maria Hermínia Tavares de Almeida, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.
Nenhum comentário:
Postar um comentário