- O Globo
Corrupção é mais um mecanismo de acumulação seletiva e de incremento da desigualdade
A última década testemunhou o surgimento, em muitos países, de personalidades e grupos políticos contrários às elites tradicionais, de discurso agressivo contra o status quo, muitas vezes denominados de populismos. Com algumas exceções parciais, como Grécia e Espanha, estes populismos bebem na tradição da extrema direita. É cedo ainda para avaliar em detalhe este fenômeno, de causas complexas e diferenças de país a país, mas é possível refletir sobre os possíveis equívocos da esquerda que contribuíram para esse cenário.
O primeiro é o foco, nos últimos anos, em pautas políticas identitárias. Nada mais justo do que defender as minorias sexuais ou raciais de um tratamento discriminatório. Contudo, num cenário de desigualdade econômica crescente que, como mostra Piketty, está chegando em níveis que só existiam antes dos anos 40, boa parte da esquerda deixou de lado as políticas de redução da desigualdade econômica, como a política fiscal, para se centrar na defesa das minorias. Essa escolha não acalmou o mal-estar das classes baixas, cujos integrantes migraram para opções políticas cada vez mais conservadoras. A direita, por sua vez, aceitou o desafio identitário e desenvolveu projetos políticos identitários para as maiorias, a partir da percepção de uma suposta ameaça.
Assim, heterossexuais passaram a sentir ameaçados pelas “novas” orientações sexuais, e cidadãos de países ricos passaram a acreditar que os migrantes poderiam destruir sua identidade nacional. A falta de um projeto político transformador e igualitário para o conjunto da sociedade, num momento de crescente frustração com a globalização, abriu um espaço político que foi ocupado pelo retorno ao nacionalismo e ao nativismo. Apelos a colocar o país em primeiro lugar são hoje comuns e, inclusive, dão nome a projetos e a partidos políticos.
Um segundo problema é o tratamento da corrupção. Para boa parte da esquerda, a corrupção foi sempre um problema menor, uma distração da luta de classes. Na América Latina, onde a corrupção é endêmica, os governos progressistas que chegaram ao poder na década passada ignoraram a questão.
Acreditaram, erradamente, que seriam jugados pelos mesmos parâmetros de governos anteriores, mas, dado que a esquerda sempre pregou a renovação moral, os níveis de exigência acabaram sendo mais elevados. Além disso, quando o boom das commodities acabou, e a economia entrou em crise, a tolerância social com a corrupção caiu abruptamente, e muitos governos de esquerda foram alvo de acusações de corrupção. É verdade que, em vários países, a Justiça penal foi usada seletivamente contra políticos progressistas, o que se conhece como lawfare , mas não é menos certo que os níveis de corrupção continuaram elevados.
De qualquer forma, o principal erro da esquerda não foi moral, mas doutrinário. Embora a corrupção afete a todos os setores sociais, os lucros auferidos através dela são muito maiores para quem dispõe de um capital político e econômico significativo. Assim, a corrupção constitui mais um mecanismo de acumulação seletiva e de incremento da desigualdade. Para enfrentá-la não bastam apelos à superioridade moral, é preciso fortalecer os mecanismos de fiscalização e transparência. Eis uma proposta política absolutamente progressista que a esquerda deixou, em muitos países, nas mãos da direita.
O exercício da autocrítica não garante o fim das derrotas, mas a ausência dela significa que elas, provavelmente, continuarão.
*Ignacio Cano é professor da Uerj
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