Jornalista de 83 anos, que escreveu a primeira biografia da cantora, relembra histórias da 'Divina' em seu centenário
Rosa Maria Araujo, especial para O Globo
RIO — O centenário de Elizeth Cardoso (na última quinta-feira, 16) está sendo celebrado ao longo desta semana da maneira que ela merece, com relançamentos de discos importantes e shows virtuais. A data me fez pensar em Sergio Cabral, jornalista que escreveu a biografia da cantora, revelando muito do que se sabe sobre ela hoje. Nada me pareceu mais saboroso neste momento do que conversar com ele sobre “a divina”.
Na verdade, Sergio é responsável por muito do que se sabe sobre música brasileira. Fundador de “O Pasquim”, editor de vários jornais e revistas por décadas, ele é autor de mais de 20 livros, entre eles as biografias de Pixinguinha, Almirante, Nara Leão, Ary Barroso, Tom Jobim, Ataulfo Alves.
Somos amigos há três décadas. Ao longo deste tempo, conversamos muito sobre nossas paixões em comum — já que sou historiadora e ex-diretora do Museu da Imagem e do Som do Rio. Companheiros no amor pela criatividade carioca, fomos parceiros na criação de musicais como “Sassaricando: e o Rio inventou a marchinha”, que ficou dez anos em cartaz no Brasil, indo até Portugal.
Longe das entrevistas há cerca de seis anos, Sergio saiu de sua reclusão nesta conversa. Aos 83, ele já andava fora do circuito cultural bem antes da quarentena por Covid-19 se impor. Apesar de bem disposto e bem-humorado, tem alguns problemas de saúde típicos da idade, e certas dificuldades com memória recente. Mas as lembranças do passado, sobretudo as que dizem respeito a suas pesquisas para os livros, seguem calibradas.
Sergio segue também muito interessado em futebol e cultura. Ao lado de Magaly, sua incansável companheira, assiste a concertos e shows, curte netos e bisnetos, aprecia um bom cozido, e não rompeu com o whisky. O médico permite uma dose, de quando em vez, bem como campari, seu drinque favorito.
Como Sergio e Magaly toparam a empreitada da conversa, fui reler “Elisete Cardoso: uma vida” (o livro, lançado pela editora Lumiar em 1996 e reeditado em 2010, traz a grafia com “s” e “te” porque Sergio dizia “que respeita a língua portuguesa”). E partimos para este papo, por Skype, cada um de sua casa.
Sergio lembrou que tinha 21 anos, em 1958, quando conheceu Elizeth já como uma estrela do Au Bon Gourmet, boate em Copacabana que marcou época. Mas que até chegar ali ela traçou um caminho irregular.
— Elizeth teve uma vida muito difícil. Até se consagrar como cantora, conseguir uma profissão que lhe rendesse dinheiro, ela enfrentou muita dificuldade — disse Sergio, lembrando que ela foi babá, cabeleireira, manicure e operária de fábrica. — Para mim, ela é uma legítima carioca. Era uma pessoa muito inteligente, generosa, e eu tenho muitas saudades dela, sabe. Uma das grandes figuras que conheci na vida.
Apesar da estrada em outros trabalhos, Elizeth começou a cantar em programas de rádio cedo, aos 16 anos. Mas nos anos 1930 a estrutura era precária na maioria das emissoras, e pagava-se muito pouco.
— Não era profissional, estava longe disso. Na verdade, o rádio era lançamento para uma carreira artística, que permitia ao candidato cantar em dancing, cantar em teatro, prosseguir pelo subúrbio cantando. Tinha muito, no Rio, essa coisa de cantores profissionais irem no subúrbio cantar, principalmente quando tinha circo. Isso eu me lembro bem, porque eu sou de Cavalcante.
Se o subúrbio fez parte do circuito essencial dos artistas da época, os dancings também foram etapa importante da escola da vida. Neles, Elizeth atuou como crooner e dançarina (“e dançava muito bem, digo isso porque dancei com ela”, contou ele). Mas foram as boates da Zona Sul a vitrine essencial para chegar a outro patamar da carreira. Com todos os contrastes incluídos, como sentiu na pele o próprio Sergio, repórter iniciante da coluna de Carlos Machado, no “Diário da Noite”.
— Eu me lembro, primeiramente, do luxo do Au Bon Gourmet. As pessoas eram distintas, no sentido mais antigo da palavra. Para mim era um lugar de rico, e eu estava lá por contrabando — observou, divertido. — Houve um momento em que Elizeth se destacou como cantora de grã-finos, porque cantava naquele tipo de lugar.
Mas se muito do que acontece na noite morre na própria noite, Elizeth logo marcaria seu nome na indústria fonográfica. E, fosse ao vivo ou em estúdio, para o biógrafo o que fazia diferença na interpretação dela era o calor humano. Sergio lembra que ela foi escolhida para o hoje icônico disco “Canção do amor demais”, de 1958, simplesmente porque Vinicius de Moraes era um grande fã.
— O Vinicius gostava muito dela, não porque ela fosse cantora de bossa nova, até porque não era. Mas porque ela interpretava muito bem as músicas dele — observou Sergio, lembrando também que “não há dúvida de que ele gostaria de ter dado uma namoradinha com Elizeth”. — Foi ela que não quis.
'VENCEU A ARTE'
Se o álbum não foi exatamente popular, “teve impacto nas classes A e B e entrou para a História”. Nos anos seguintes, novas aventuras. Em 1964, a chegada ao Teatro Municipal para cantar as “Bachianas”, de Villa-Lobos, acompanhada de orquestra regida por Diogo Pacheco. Como o Artur Xexéo bem lembrou em sua última coluna, que saiu junto com o especial sobre o centenário da cantora aqui neste caderno, na época houve quem não gostasse. Sergio lembrou-se de ter ouvido frases como “imagina Elizeth Cardoso, essa mulata cantando no Municipal”.
— Havia um preconceito. Mas prevaleceu o bom senso, e venceu a arte.
Os anos 1960 são uma boa amostra da versatilidade da cantora. Contei para Sergio que “Elizeth sobe o morro”, lançado logo no ano seguinte da apresentação no Municipal, é o disco dela que eu levaria para uma ilha deserta, pois adoro samba e ali ela gravou nomes como Nelson Cavaquinho e Paulinho da Viola. Ele parou e pensou. Concluiu que o seu predileto é “Elizeth Cardoso, Zimbo Trio e Jacob do Bandolim”, gravado ao vivo em antológico show no Teatro João Caetano em 1968.
— Esse show foi um sucesso por causa da Elizeth. As pessoas foram por causa dela, e chegando lá deram de cara com o Jacob do Bandolim, na minha opinião o maior instrumentista que o Brasil já teve! Sem dúvida, é o disco que eu levaria para a ilha deserta.
Por essas e outras, a definição “divina”, dada inicialmente por Haroldo Costa, grudou tão bem em Elizeth. Simples como era, ela chegava a ficar envergonhada por ser chamada assim. Lembramos então de uma história ótima que Sergio conta no livro: Sarah Vaughan, que ficou sua amiga e também era chamada de divina, foi quem falou para ela deixar de besteira e aceitar o lindo epípeto.
Encerrando a conversa, não pude deixar de fazer uma pergunta provocativa para Sergio.
— Dá para a gente dizer quem é a maior cantora do Brasil? Elis Regina ou Elizeth Cardoso?
A resposta foi rápida.
— As duas tiveram momentos fantásticos. Tecnicamente, Elis. Brasileiramente, sentimentalmente, Elizeth.
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