Dante
inseriria Trump nos círculos do inferno em que penam os falsários e os
traidores
A
tomada da Bastilha prefigurou a Revolução Francesa; a invasão do Palácio de
Inverno, a implantação do comunismo na Rússia; a marcha sobre Roma, a afirmação
do fascismo na Itália; a Noite dos Cristais, na Alemanha, o Holocausto. O que
configura a ocupação violenta do Congresso em Washington por uma horda de
adeptos do trumpismo, inconformados com a vitória eleitoral de Joe Biden? Ela
foi uma surpreendente e inédita ruptura dos tradicionais limites que sempre
cercaram e protegeram a autoridade das instituições políticas dos Estados
Unidos.
A
República americana continuadamente teve como uma das características da sua
identidade o respeito às instituições e a afirmação de um “governo das leis”
sob a égide e a aura da Constituição. É o que foi configurando, no correr de
uma longa experiência histórica, a autoridade da democracia ensejando um
patamar de estabilidade aos seus processos de mudança política, com destaque
para a dinâmica das sucessões presidenciais provenientes de eleições
periódicas.
O
que mina e corrói a autoridade é o desprezo pelos limites que ela naturalmente
impõe. Daí, nos Estados Unidos, a figura jurídica do contempt of Court, que penaliza,
num processo, quem deliberadamente cria obstáculos à administração da justiça,
descartando a dignidade e a autoridade da Corte. Contempt of Congress aplica-se
aos que obstam ou buscam impedir o due
course dos seus procedimentos.
Desprezo pelos limites, foi isso que configurou o que se passou em Washington. O estrépito do “vale-tudo” da violência pôs em questão a autoridade das instituições. Buscou comprometer o alcance do abrangente poder conjunto da cidadania de lidar com os problemas e desafios do país pela via do processo eleitoral.
A
ocupação violenta do Congresso teve como objetivo obstruir os procedimentos de
formalização conclusiva da inequívoca vitória eleitoral de Biden, confirmada
pela dinâmica das instituições e pelas diversas instâncias do Poder Judiciário,
que rejeitou, por absoluta falta de provas, as incontáveis alegações de fraude
com as quais Trump alimentou a sua própria inconformidade e a da horda de seus
mais raivosos militantes com o desfecho do processo eleitoral.
O
desprezo pelos limites do politicamente aceitável confirmou que a eleição foi
uma luta pela “alma” do país e pelo espírito que historicamente a vivificou.
Uma luta que Joe Biden travará na sua presidência.
Trump
dedicou-se à corrupção da alma da República e da confiabilidade das suas
instituições. Foi o que preparou a ruptura dos limites. São notas de sua
atuação a mentira como princípio de governança voltada para manipular o
Congresso e o Partido Republicano, com o personalismo do seu “bullying”,
direcionado para um contínuo esforço de operar um regime ao arrepio da lógica
do “governo das leis”. Por isso o empenho do trumpismo em pôr de lado as
práticas e os preceitos constitucionais e jurídicos atravancadores do ímpeto da
vontade presidencial num Estado de Direito. Daí o deslavado inserir do ilícito
nos processos políticos do país, o uso abusivo do “privilégio do Executivo” e
do perdão presidencial para proteger os colaboradores que mobilizou na sua
sanha destrutiva.
Trump
cobriu com um tecido de mentiras o espaço público dos Estados Unidos com a sua
solerte operação das redes sociais. Criou “bolhas” intransitivas alimentadas
por polarizações, cevadas pelo discurso de ódio, voltadas para desqualificar os
que a ele se contrapunham. Aviltou o bem público da inclusividade, que é um dos
valores da democracia. Confrontou com suas arengas despropositadas uma das
máximas do mérito da democracia: é melhor contar cabeças do que cortar cabeças,
nas palavras de Bobbio.
A
virtude é um dos ingredientes de uma República que deve zelar pelo bem comum.
Quando ela fraqueja, como na presidência Trump, abre-se o espaço para o domínio
das baixas paixões, dos ressentimentos, das invejas e da vaidade. Trump traiu a
alma das instituições republicanas dos EUA. Dante o inseriria nos círculos do
inferno onde penam os falsários e os traidores.
A
força das instituições americanas está contendo a sua fúria destrutiva. Mas ela
é configuradora de consequências não só para os Estados Unidos, mas para o
mundo, com destaque para a vigência do valor da democracia.
O
trumpismo mina o softpower gravitacional
da democracia americana no mundo. Justificá-lo é uma ameaça generalizada à
democracia. Daí a inconformidade democrática, no Brasil, quanto às recentes
manifestações do presidente e do seu chanceler. Elas são mais do que a
expressão de afinidade com uma concepção da prática política. Revelam uma
declarada simpatia pelas posições de Trump e dos seus mais raivosos adeptos.
Foram uma oportunidade para nelas identificar uma antecipada prefiguração de
uma despropositada fraude eleitoral nas eleições presidenciais de 2022. É um
semear de ventos para tempestades políticas futuras.
*Professor emérito da Faculdade de Direito da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)
Nenhum comentário:
Postar um comentário