Por Glauce Cavalcanti / O Globo
Para economistas, país vive 'tempestade
perfeita', com juro alto e consumo fraco, que agravam problemas de gestão e
ampliam dificuldades nas companhias
Primeiro
foi a Americanas. Depois, Oi, Marisa, Nexpe (antiga Brasil Brokers),
Tok&Stok. A lista de empresas com dificuldades para pagar dívidas, buscando
reestruturação financeira ou até proteção da Justiça, não para de crescer neste
ano. Por trás da série de crises, uma conjunção de fatores agrava problemas
operacionais e de gestão.
O principal elemento é a alta dos juros, que encarece o crédito. A Selic, taxa básica definida pelo Banco Central (BC), disparou de 2% no início de 2021 para 13,75% em agosto de 2022 e se mantém neste patamar. Soma-se a isso a lenta retomada do consumo, afetado pela inflação e pela perda de renda da população, já muito endividada, derrubando os ganhos das corporações. Por fim, a incerteza sobre a política fiscal do novo governo compromete a confiança dos investidores, apontam especialistas.
— Empresa que presta serviço ao consumidor
sofreu mais na pandemia e é mais afetada. Não vemos retomada de vendas na
proporção necessária para gerar o caixa que diversas empresas precisam para
pagar suas dívidas. É dívida que foi postergada nos últimos anos e que, com a
alta do juro, ficou bem mais cara — explica Eduardo Seixas, sócio-diretor da
Alvarez & Marsal, consultoria especializada em recuperação judicial e reestruturação.
Abalo não é sistêmico
A corrida por renegociação de dívidas era
esperada por especialistas, mas não é vista como uma crise sistêmica. É que no
início da pandemia, houve larga oferta de crédito corporativo e flexibilidade
de governo e bancos para renegociar, adiando um problema precipitado agora pela
escalada dos juros. E cada companhia tem seus problemas específicos, aguçados
pela tormenta, como falhas de governança, conjunturas setoriais e apostas
erradas.
Filipe Villegas, estrategista da Genial
Investimentos, destaca que o BC foi um dos primeiros do mundo a subir juros
contra a inflação. Agora, empresas enfrentam um choque de juros e outro de
confiança.
— Foi necessário, mas talvez tenha sido
muito intenso. A Selic passou de 2% para perto de 14%. E isso tem efeito muito
significativo na população e nas empresas — diz Villegas. — Há ainda um fator
minando a confiança no país, para frente. A estimativa é de crescimento pífio
este ano. E o caso da Americanas, uma das maiores varejistas do país, levanta dúvidas
sobre quão frágeis podem estar outras empresas, sobretudo pequenas e médias.
Há também o componente político. A
indefinição do governo sobre a política fiscal e as rusgas do Executivo com o
BC dificultam a queda dos juros. Na ponta, tudo se se traduz em freio nos
investimentos, observa o estrategista da Genial:
— Uma coisa seria ter uma taxa de juros a
13,75% e sinalização de queda em algum momento próximo. Mas o que temos hoje
não é isso. Os fatores centrais continuam e deixam empresas muito alavancadas,
minam a confiança dos empresários e mantêm estimativas de geração de caixa
menor.
Vinícius Carmona, diretor de Relações com
Investidores do banco de investimentos BR Partners, avalia que uma indicação de
queda, ainda que pequena, na Selic tornaria o ambiente mais propício à
recuperação das empresas. Mas frisa que a crise não é generalizada:
— Não é um problema sistêmico ou uma crise
no setor corporativo. Um custo de dívida (na prática, taxas adicionais cobradas
pelos bancos) de 16% ou 17% ao ano é insustentável. A inadimplência está
mostrando sinais de piora, principalmente em pequenas e médias empresas. Chega
por último nas grandes, o que traz desaceleração ao investimento. Mesmo
empresas com caixa preservado, postergam aportes pela incerteza fiscal.
O BR Partners foi contratado recentemente
para dar assessoria
financeira à varejista Marisa, à rede de agências de viagens CVC e à Nexpe,
antiga Brasil Brokers, do setor imobiliário, já em recuperação judicial.
Carmona não comenta casos de clientes, mas diz que, no banco, este é o início
de ano de maior demanda nessa área:
— O cenário é de ajuste. Os balanços dos
bancos mostram aumento de renegociação de dívida com empresas ao longo de 2022.
Há deterioração nesse sentido. Os bancos terão de ajustar o spread (taxa além
da Selic) porque a percepção de risco aumentou. Com crédito mais caro, não se
cria alavancas de crescimento. As empresas têm de priorizar caixa, vender
ativos. Vamos ver consolidação (fusões e aquisições).
A Marisa — com 334 lojas e mais de oito mil
empregados — informou que contratou a BR Partners para começar pela
reprogramação de dívidas de curto prazo. Segundo a varejista, é parte do
trabalho que faz para recuperar sua rentabilidade e redefinir seu modelo de
negócio diante do cenário desafiador. Também conta com a Galeazzi &
Associados para estruturar “mudanças necessárias para incrementar a
rentabilidade e a competitividade da empresa”.
Outras companhias vão nessa direção. A
Tok&Stok buscou a Alvarez & Marsal, que já atua na crise da Americanas
ao lado da Rothschild, responsável pela parte financeira em meio às negociações
com credores no âmbito da recuperação judicial. A distribuidora
de energia Light, do Rio, contratou o apoio da LaPlace também para
reorganizar dívidas.
A operadora de telefonia Oi, que havia
concluído sua longa recuperação judicial no fim de 2022, voltou
a pedir apoio à Justiça, dizendo-se afetada pela deterioração da economia,
com queda mais acentuada em receitas de telefonia fixa e impactos de débitos do
passado. A Oi diz precisar da “continuidade do processo de reestruturação de
sua dívida, em discussão com os principais credores”, e equacionar a
“deficitária telefonia fixa”. Americanas, CVC, Light, Nexpe e Tok&Stok não
comentaram.
‘A conta chegou’
O caso da Americanas — que anunciou
“inconsistências contábeis” de R$ 20 bilhões e foi levada à recuperação
judicial com dívidas perto de R$ 43 bilhões — é visto à parte, por ser
resultado de falhas na governança ainda em apuração, ressaltam os
especialistas. No entanto, acabou tornando bancos e credores menos flexíveis
com as outras empresas.
— A alta da inflação comeu a margem das
empresas porque elas não puderam repassar toda a alta de custo que tiveram ao
consumidor. Isso freia geração de caixa enquanto o endividamento subiu demais.
É algo acontecendo também em Europa e EUA no pós-pandemia e com a guerra na
Ucrânia — destaca Salvatore Milanese, sócio da Pantalica Partners. — Agora, com
bancos contingenciando recursos por causa da Americanas, o crédito está mais
caro e seletivo.
Para a advogada Juliana Bumachar,
especialista em recuperação judicial, dois anos de juros nas alturas esgotaram
as apostas de muitas empresas para melhorar a operação:
— Houve mudança na legislação no fim de
2020, que permitiu a mediação para renegociar com credores mesmo antes da
recuperação judicial. Isso ajudou. Empresas em recuperação também puderam
apresentar novo plano de reestruturação. Algumas usaram essas ferramentas para
se reorganizar. Outras empurraram o problema. E a conta chegou.
Crises respingam nos fornecedores. Se a
situação de grandes empresas não é boa, Michael Burt, analista da LCA, diz que
a das pequenas é pior:
— A inadimplência de micro e pequenas
fechou 2022 em 3,7%, contra 0,13% nas grandes, com tendência de alta. Cresce
também a fatia desses negócios com potencial de inadimplência. É um alerta.
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