Valor Econômico
Uma habilidade tão antiga, que se pode
dizer secular
A habilidade de alguns caciques políticos
de navegar em águas nem sempre tranquilas com um pé em cada canoa é uma arte
secular. Remonta ao teatro italiano do século XVIII, à farsa mirabolante e ao
humor cínico característicos da commedia
dell’arte .
Escrita pelo veneziano Carlo Goldoni em
1745, a peça “Arlequim, servidor de dois amos” - um clássico dessa dramaturgia
- revela uma afinidade espantosa com a atual conjuntura política, em que
dirigentes de partidos políticos proclamam a independência do governo federal
com a mesma naturalidade com que negociam ministérios com o presidente da
República à luz do dia.
As semelhanças da peça com o cenário político brasileiro são salientes. “Mas essa é boa mesmo: tanta gente que não consegue sequer arranjar um patrão, e eu arrumei logo dois, vejam só”, tripudiou Trufaldino, o Arlequim na trama em questão. “Mas não posso ser o criado dos dois”, refletiu, por alguns segundos.
Depois, recuou: “Espera aí, quem foi que
disse que não posso? Por acaso, não é um bom negócio ganhar dois ordenados e
comer dobrado? É sim, se eles não souberem um do outro; e se descobrirem, não
perco nada porque se for despedido por um, fico com o outro”, concluiu, com o
pragmatismo peculiar a uma parcela dos políticos brasileiros.
No enredo, irritado com o patrão que não
lhe proporcionava no tempo devido e nas quantidades esperadas as devidas
refeições, Trufaldino/Arlequim - alguém de apetite insaciável - começou a
prestar serviço a dois amos, simultaneamente, a fim de se locupletar, e de se
empanturrar, não exatamente nessa ordem.
“Com este patrão a gente come pouco e nunca
tem hora para comer”, reclamou em relação ao primeiro amo. “Aprendam a ter mais
consideração com o estômago dos criados”, cobrou, em pensamento, ao ser
alimentado pelo segundo amo.
Arlequim que é protagonista de mais de uma
trama da commedia dell’arte é
um personagem astuto, ágil, capaz de ardis e de tiradas maliciosas para se
safar das enrascadas em que se envolve enquanto busca, antes de tudo, o melhor
para si. Uma inspiração para adeptos do pragmatismo, inclusive político.
Muitas lideranças nacionais, reconhecidas
pela habilidade e capacidade de diálogo, destacam-se na arte de servir a dois
amos, assegurando espaços de poder estratégicos, e declarando-se politicamente
independentes.
O secretário de Governo de São Paulo e presidente
nacional do PSD, Gilberto Kassab, fez escola. O ex-prefeito de São Paulo
tornou-se influente, simultaneamente, nos espaços políticos mais importantes do
país. Além de se consolidar como um dos principais conselheiros do governador
Tarcísio de Freitas (Republicanos), um dos líderes da oposição ao PT, o PSD tem
o vice-governador Felicio Ramuth. Concomitantemente, o partido controla três
ministérios no governo Lula: Minas e Energia e Agricultura - duas das pastas
mais cobiçadas -, e Pesca e Aquicultura.
Em meio à reforma ministerial do presidente
Luiz Inácio Lula da Silva, testemunhamos os presidentes do Republicanos,
deputado Marcos Pereira (SP), e do Progressistas (PP), senador Ciro Nogueira
(PI), percorrerem a mesma trilha de Kassab e do Arlequim, pioneiro na
estratégia.
A retórica dos caciques é de que os
partidos são independentes, e os ministérios que conduzem (no caso do PSD), ou
que vão conduzir no governo Lula terão como titulares quadros indicados pelas
bancadas na Câmara dos Deputados e no Senado. Como se fosse possível um time de
futebol entrar em campo dividido: o ataque com um uniforme, a retranca com
outra camisa, e a torcida perplexa.
Pereira deve se reunir com Lula nesta
quarta ou quinta-feira para discutir o ingresso do partido no primeiro escalão
do governo federal, e qual espaço seria reservado para a legenda.
Nogueira joga no bastidores, enquanto o
presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) e o líder da bancada, André Fufuca
(MA) - que será ministro - são os interlocutores do PP com o presidente. Lula
deve ter nova conversa com Lira hoje, na volta do Paraguai.
A retórica da “independência com
ministérios” não tem precedentes nos governos Lula 1 e 2 ou na gestão Dilma
Rousseff, em que Republicanos e Progressistas não foram aliados pela metade.
Em julho de 2005, o presidente da Câmara,
Severino Cavalcanti (PE), do PP, o “Lira” da ocasião, indicou o então deputado
federal Ciro Nogueira para assumir o Ministério das Comunicações de Lula.
Depois a articulação mudou e o secretário-executivo do Ministério do
Planejamento, Márcio Fortes, um quadro técnico do PP, virou ministro das
Cidades na cota cedida ao partido. Já o Republicanos foi aliado por completo do
PT na gestão Dilma, com Marcelo Crivella na pasta da Pesca, e George Hilton no
Esporte. Como presidente do Republicanos, Pereira foi ministro de Michel Temer
à frente do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC).
“No momento, meu objetivo e minha
preocupação é ajudar o governador Tarcísio a ser um bom governador e o
presidente Lula a ser um bom presidente”, resumiu Kassab sobre a arte de se
equilibrar em duas canoas, em um evento com empresários em maio.
Nenhum comentário:
Postar um comentário