terça-feira, 15 de agosto de 2023

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Sucesso de Milei na Argentina deve servir de alerta

O Globo

Vitória do populista nas primárias é sinal da ameaça da extrema direita no continente americano

O candidato populista de extrema direita à Presidência da ArgentinaJavier Milei, foi o mais votado domingo nas Primárias Abertas Simultâneas e Obrigatórias (Paso), fase em que os eleitores determinam os nomes na cédula do primeiro turno, previsto para 22 de outubro. Com 30% dos votos, Milei, do partido A Liberdade Avança, ficou à frente da coligação de centro-direita Juntos pela Mudança (28,2%), liderada por Patricia Bullrich, e da peronista União pela Pátria (27,2%), encabeçada por Sergio Massa. Os peronistas amargaram um inédito terceiro lugar, com o pior desempenho desde a redemocratização.

Não surpreende que um político demagogo, quase caricato, como Milei tenha se aproveitado do naufrágio do peronismo. De certa maneira, a surpresa é que tenha demorado tanto. Nas últimas duas décadas, a Argentina seguiu à risca o roteiro que a torna, desde os anos 1930, o exemplo de maior decadência econômica em tempos de paz nos últimos séculos. Não bastasse o populismo econômico de Néstor e Cristina Kirchner, o ex-presidente Mauricio Macri errou ao apostar no endividamento externo e engendrou mais uma bancarrota argentina.

A volta do peronismo ao poder, com Alberto Fernández, em nada melhorou a situação. Em março, a inflação em 12 meses passou de 100%. Como costuma ocorrer nesses casos, a corrosão dos salários tem gerado pobreza. A taxa de câmbio voltou a disparar ontem com o resultado das primárias. O populismo de esquerda preparou o terreno para o populismo da extrema direita.

Os próximos meses serão cruciais para o futuro da democracia argentina. Milei é frequentemente comparado a Jair Bolsonaro ou a Donald Trump pelo estilo despachado, pelo jeitão autêntico com a cabeleira desgrenhada, pela capacidade de mobilizar apoio nas redes sociais e pela semelhança com outros outsiders que têm tomado a democracia de assalto mundo afora.

Mas seu perfil é distinto. Ele até tem vínculos com as Forças Armadas, mas nada comparável a Bolsonaro. Economista cuja popularidade cresceu graças a comentários explosivos na televisão, está mais próximo do ideário libertário que do conservador. Fala menos de aborto ou armas que em ideias extravagantes, como autorizar a venda de órgãos humanos, extinguir o Banco Central ou dolarizar a economia para combater a inflação. Para problemas complexos, oferece soluções fáceis e equivocadas. Se eleito, mesmo que não consiga pôr em prática tudo o que promete, seu governo seria desastroso.

Bullrich, do grupo político de Macri, e o peronista Massa passarão os próximos dias tentando criar uma estratégia para derrotá-lo. Ambos falarão em voto útil, e é impossível saber quem passará para o segundo turno. A crise do peronismo leva Milei a ter mais chance contra Massa do que contra Bullrich, mas é impossível prever qualquer resultado diante do comportamento do eleitorado.

A abstenção no domingo foi a maior para uma primária desde a redemocratização. Apenas 68% votaram. É incerto quanto desse descontentamento Milei conseguirá capturar em outubro ou quantos eleitores se sentirão compelidos a votar para impedir sua vitória. O certo é que o populismo de extrema direita, vivo nos Estados Unidos com o trumpismo e no Brasil com o bolsonarismo, continua a ameaçar o continente americano.

Tentativa de aumentar fundo eleitoral é constrangedora para o Parlamento

O Globo

Defensores do aumento não estão satisfeitos nem com R$ 4,9 bilhões aprovados em 2022 e querem mais

Não tem cabimento a movimentação de parlamentares para aumentar o fundo eleitoral, que financia as campanhas políticas. O Congresso articula mudança na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) com o objetivo de elevar os recursos, contrariando a expectativa do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, de manter em 2024 os mesmos R$ 4,9 bilhões de 2022. Defensores do aumento falam em subir o valor para R$ 5,7 bilhões, mesma quantia aprovada pelo Congresso em 2021 e vetada pelo então presidente Jair Bolsonaro. Na ocasião, a manutenção dos gastos em R$ 2,1 bilhões (valor de 2018 corrigido pela inflação) teria sido mais que suficiente.

O fundo eleitoral surgiu em 2015, depois que o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou inconstitucionais as doações feitas por empresas para campanhas políticas. A decisão ocorreu em meio à sucessão de escândalos de corrupção revelados pela Operação Lava-Jato envolvendo contribuições por caixa dois. A intenção do Judiciário era moralizar as campanhas eleitorais, mas os políticos descobriram outras formas de desvirtuá-las.

Os argumentos para defender a gastança eleitoral são os mais estapafúrdios. Sustenta-se que o fundo atual é insuficiente para os partidos divulgarem todos os seus candidatos num país de dimensões continentais. “É preciso chegar a um valor que seja compatível com o tamanho do Brasil e das eleições”, diz o relator da LDO, deputado Danilo Forte (União-CE). Se o fundo eleitoral fosse realmente insuficiente para realizar as campanhas políticas, não sobraria dinheiro para fazer churrascadas, construir piscinas, comprar talheres e taças de vinho, alugar frotas de carros milionárias e outros descalabros perpetrados com recursos públicos destinados às eleições.

Evidentemente, nem todos os candidatos ou partidos fazem mau uso dos recursos. Em tese, o fundo é importante para proporcionar equilíbrio na disputa. As prestações de contas claudicantes ao TSE mostram, porém, que na prática não funciona assim. O controle sobre os recursos é cada vez mais frágil. Não por culpa da Justiça Eleitoral. Mas porque as maracutaias detectadas nas análises das contas partidárias tendem a ficar impunes. Há sempre uma movimentação do Congresso para perdoá-las. Agora mesmo, quando parlamentares pressionam pelo aumento do fundo eleitoral, tramita no Congresso uma PEC que concede a maior anistia da História recente aos partidos.

Há também quem defenda, como o presidente do Republicanos, deputado Marcos Pereira, que o fundo seja corrigido ao menos pela inflação. Seria uma medida razoável, desde que a base adotada fosse o ano de 2020, quando a despesa somou R$ 2 bilhões, mas não os R$ 4,9 bilhões de 2022. No Brasil de “dimensões continentais”, falta dinheiro para atender às necessidades mais básicas. O governo anunciou bloqueio de R$ 1,5 bilhão no Orçamento deste ano (metade em saúde e educação), porque a estimativa de gasto superou o teto. Diante disso, deveria causar constrangimento aos parlamentares reivindicar o aumento do fundo eleitoral.

Vitória de Milei põe em xeque sistema político argentino

Valor Econômico

Peronistas e frente de centro-direita perdem força nas primárias, vencidas pela extrema-direita

Javier Milei, de extrema direita, venceu as primárias obrigatórias na Argentina, lançando uma onda de choque que ameaça os partidos tradicionais e põe novos e angustiantes pontos de interrogação sobre o desdobramento da crise econômica e política do país. Depois de um início promissor, Milei vinha voando baixo nas pesquisas mais recentes. Sua vitória, com 30,04% do total e 7,11 milhões de votos, surpreendeu a todos. O Banco Central promoveu desvalorização oficial de 18% no peso e elevou a taxa de juros para 118%, em uma alta de 21 pontos. Os argentinos voltam às urnas para a eleição do presidente, metade da Câmara dos Deputados e um terço do Senado em 22 de outubro.

“Estamos diante do fim do modelo de casta, esse modelo baseado na atrocidade que diz que onde há uma necessidade nasce um direito, enquanto se esquece de dizer que alguém terá de pagar por esse direito”, disse Milei logo após a vitória, repetindo seu mantra de campanha contra os políticos em geral. Um resultado excepcional nas primárias obrigatórias muda as chances do candidato de A Liberdade Avança. Sua campanha, vista como exótica e quixotesca, pode atrair o apoio que não teve até agora no mundo político, arrastando adeptos diante da perspectiva de poder.

O trunfo de Milei foi disseminado. Ele venceu em 16 das 23 províncias argentinas, entre elas algumas das mais importantes, como Córdoba, Mendoza, Santa Fe e Tucumán. Se repetir o mesmo desempenho em outubro, a bancada da extrema-direita na Câmara dos Deputados poderá subir dos atuais 3 para até 40, pouco menos de um terço dos 130 cargos em disputa. No Senado, poderia arrebatar 8 das 24 cadeiras em jogo (jornal Ambito Financiero, ontem).

Pela primeira vez desde o fim de uma das mais violentas ditaduras da América Latina, em 1983, parcela significativa dos argentinos parece votar em candidatos que não têm visão negativa daqueles anos sombrios. A candidata a vice de Milei, Patricia Villarruel, contesta o número de mortos pelos militares e disse que os terroristas nos anos 1970 tomaram o poder e reescreveram a história. Milei não defende explicitamente a ditadura, mas é conivente com ela e ferrenho anticomunista, além de contra o aborto e a favor das armas. Alinha-se com Jair Bolsonaro, a quem cumprimentou, mesmo derrotado, pelo resultado nas últimas eleições. Acha que o povo brasileiro, ao dar vitória a Lula, “elegeu quem vai destruí-lo”.

Milei se diz anarcocapitalista, a favor de privatizar tudo, fechar o Banco Central e dolarizar a economia. Ao fazer isso, os cidadãos poderão “escolher sua moeda e não serem obrigados a suportar a moeda emitida pelos políticos argentinos”. Essas ideias são dinamite pura em uma economia em recessão de um país que já perdeu autonomia sobre sua moeda e vive aguda escassez de divisas.

Milei segue em posição confortável - nada tem a perder com a crise que atravessou mandatos dos partidos tradicionais, como o de Mauricio Macri e o peronista de Alberto Fernández e Cristina Kirchner. Tanto o Juntos pela Mudança, que reúne adeptos de Macri e os radicais, quanto o União pela Pátria, das várias correntes peronistas, tiveram resultados muito ruins nas primárias.

Os peronistas, ao se classificarem em terceiro lugar, com 27,2% dos votos, amargaram o pior desempenho até hoje neste tipo de disputa. Perderam 5 milhões de votos em quatro anos (Clarín, ontem). Individualmente, Sergio Massa, candidato e ministro da Economia, foi o segundo mais votado, com 21,7% do total, ou 5,07 milhões, à frente de Patricia Bullrich, macrista, com 3,9 milhões. O Juntos pela Mudança perdeu 1,5 milhão de votos e teve menos sufrágios que o derrotado Macri em 18 dos 24 distritos eleitorais do país.

Massa, candidato peronista, comandou piora substancial da economia, conseguindo apenas evitar uma desvalorização cambial desordenada que levaria o país ao caos. Moderado, com pontes na centro-direita, no kirchnerismo e na esquerda, ele delineia um campo político bem distinto do direitismo de Milei.

Já Patricia Bullrich tem um problema. Seu discurso mais duro sobre a segurança pública e a corrupção a aproxima do eleitorado de Milei, mas pode alienar os moderados, que escolheram Horacio Larreta, que concorreu à nomeação e teve 2,65 milhões de votos. Parte deles pode se bandear para o lado de Sergio Massa se a candidata escolhida radicalizar seu discurso para tentar vencer Milei em seu campo. A moderação no discurso, no entanto, não lhe dá muitos trunfos em relação ao peronista Massa, que teve um milhão de sufrágios a mais que ela no domingo.

O surgimento de um radical de direita com chances de vitória encolheu o campo do centro, que tende a ser vítima de voto útil nos dois lados do espectro político. As chances de Patricia Bullrich galvanizar o voto peronista, com o alijamento de Massa da disputa no primeiro turno, é pouco provável. Desde 1945 não houve eleições livres sem que o peronismo fosse competitivo, a menos que o salto no escuro representado por Javier Milei tenha alterado radicalmente as percepções dos eleitores argentinos.

Guinada argentina

Folha de S. Paulo

Com derrocada econômica, primárias para Casa Rosada reforçam oposição à direita

Tornou-se quase eufemístico descrever a situação da Argentina como uma crise. Mais do que transtornos conjunturais, o país vizinho vive há anos um processo de degradação das instituições econômicas e de dissenso político que inviabiliza as reformas necessárias.

É nesse contexto que se dá a ascensão de um candidato exótico, Javier Milei, o mais votado nas primárias para a Casa Rosada realizadas no domingo (13). A tendência a uma guinada se completa com o segundo lugar obtido pela coalizão oposicionista a ser encabeçada pela conservadora Patricia Bullrich.

As primárias são uma peculiaridade do sistema eleitoral argentino. Antes do pleito, cujo primeiro turno está marcado para outubro, os eleitores manifestam previamente suas preferências nas urnas, de modo a eliminar candidaturas irrelevantes e a definir disputas dentro dos partidos e coalizões.

O rito mostrou a força espantosa de Milei, um deputado que se define como "anarcocapitalista" e é classificado, a depender do ponto de vista, como de extrema direita, ultraliberal ou libertário.

É mais útil apresentar seu ideário e sua conduta. Economista com passagem pelo setor financeiro, ele prega cortes radicais de despesa pública e redução drástica de regulações do Estado —com um voluntarismo que parece desconhecer obstáculos legais e políticos.

Discursa contra a política, embora seja um congressista. Nesse aspecto, aproxima-se do bolsonarismo, do qual recebe manifestações de simpatia. Defende o acesso a armas e combate o aborto. Com frequência se expressa de modo chulo e recorre a bravatas.

Já Patricia Bullrich foi ministra da Segurança do ex-presidente Mauricio Macri, liberal que governou o país de 2015 a 2019 e fracassou em seu programa de ajustes. A presidenciável adota uma retórica linha-dura contra a criminalidade.

O governismo peronista, representado pelo ministro da Economia, Sergio Massa, ficou em um modesto terceiro lugar das primárias —efeito óbvio de uma inflação que passa dos 100% ao ano enquanto a administração recorre à emissão de moeda para fechar suas contas, elevando a pobreza, a desigualdade e a fome.

A eleição argentina é realizada em dois turnos, o que, ao menos em tese, contribui para a aglutinação de forças e a moderação de discursos. Há tempo para uma reconfiguração do cenário eleitoral.

Mais difícil, no entanto, será um entendimento nacional mínimo em torno das medidas necessárias para superar o enorme atraso de um país ainda preso na agenda dos anos 1980, sem dispor nem mesmo de uma moeda crível e dependente do socorro financeiro do Fundo Monetário Internacional (FMI).

Disparidade doméstica

Folha de S. Paulo

Mulheres têm mais tarefas no lar do que homens, o que as prejudica no mercado

Dados do IBGE de 2022 mostram que 40,69% das mulheres com três filhos ou mais não conseguem trabalhar, ante apenas 0,62% dos homens na mesma situação. Mesmo com apenas um filho, o abismo entre mães e pais se verifica, com 21,89% e 0,55%, respectivamente.

Essa diferença abissal se explica, em grande parte, pela permanência de práticas culturais que relegam às mulheres os cuidados da casa, dos filhos e de familiares.

Segundo o módulo da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) que analisa atividades não remuneradas, as brasileiras dedicaram 9,6 horas por semana a mais a tarefas domésticas do que os brasileiros em 2022. Elas usaram 21,3 horas para administrar o lar, e eles, só 11,7.

Ademais, o único tipo de serviço que recebe mais dedicação masculina é esporádico: 60,2% deles realizam consertos na casa, no carro e em eletrodomésticos. Já as mulheres são maioria significativa em tarefas cotidianas, como cozinhar e lavar louça (95,7%), limpeza das roupas (92,3%) e da casa (82,6%).

De acordo com Claudia Goldin, primeira mulher professora titular no departamento de economia da Universidade Harvard e uma das maiores especialistas sobre a relação entre gênero e trabalho, a disparidade ocupacional e salarial entre homens e mulheres se deve pouco ao preconceito e muito a mudanças na atividade econômica.

Com jornadas de trabalho mais flexíveis, os empregados capazes de se dedicarem por mais tempo ao emprego passaram a ser mais valorizados. Por não darem tanta atenção ao lar, homens ocupam cargos com melhor remuneração —que têm carga horária maior, prazos rígidos ou exigência de viagens.

Quando não acabam por desistir da carreira, muitas mulheres precisam escolher ocupações que requerem menos tempo de dedicação e, em consequência, oferecem remuneração menor.

Assim, tentar resolver o problema somente com a criação de leis, como a que aumenta a punição para diferença salarial, recentemente proposta pelo governo e aprovada pelo Congresso, é tarefa inglória.

Para diminuir a disparidade de gênero, é necessária mudança cultural em torno das tarefas domésticas e corporativas. Também é premente a criação de uma robusta rede pública de creches e, no âmbito legislativo, a discussão de licenças parentais no pós-parto que permitam a divisão do tempo dedicado ao cuidado do filho pelo casal.

 Abusos favorecem a impunidade

O Estado de S. Paulo

Para evitar nulidades como na Lava Jato, devem ser respeitadas as regras de competências, sem ampliar as hipóteses de conexão. Moraes não é juiz universal dos casos envolvendo Bolsonaro

Diante da gravidade das suspeitas envolvendo Jair Bolsonaro no caso das vendas das joias, é preciso advertir que as instituições – polícia, Ministério Público e Judiciário – devem atuar estritamente dentro da lei. Não basta gerar escândalo. Não basta suscitar indignação. É preciso investigar seriamente, apurar as correspondentes responsabilidades e punir quem deve ser punido. E, para que tudo isso ocorra, a lei tem de ser seguida.

Nesse cuidado para que o trabalho investigativo possa cumprir sua finalidade, um ponto é decisivo: a observância das regras de competência. Pouco adianta investigar se o inquérito é conduzido por quem não tem atribuição para fazê-lo. Recentemente, acolhendo o parecer da Procuradoria-Geral da República (PGR) de que teria havido desrespeito às regras de competência, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), anulou provas colhidas na Operação Hefesto, que apura supostas fraudes na compra de kits de robótica por prefeituras de Alagoas, nas quais o presidente da Câmara, Arthur Lira, estaria envolvido.

Nessa seara, o maior exemplo de como a violação das normas processuais sobre competência inviabiliza a punição dos crimes é a Lava Jato. Apesar de ter levantado enorme quantidade de indícios de crimes – muitos deles gravíssimos, envolvendo altas esferas da República –, a operação fracassou na atribuição de responsabilidades. E esse fracasso foi obra não dos críticos da Lava Jato, mas de quem esteve à frente dela. Foi a própria 13.ª Vara Criminal Federal de Curitiba que abriu caminho para a anulação das provas produzidas, ao tomar para si casos que não eram de sua competência.

A história da Lava Jato é muito pedagógica. Instaurou-se em Curitiba uma espécie de juízo universal de combate à corrupção, o que é uma aberração no Estado Democrático de Direito. No entanto, as regras de competência nunca foram violadas formalmente. Em nenhuma decisão, o juiz Sérgio Moro desprezou expressamente as normas processuais de competência. Em tese, ele estava aplicando as regras do Código de Processo Penal (CPP). O problema era a leitura completamente distorcida que fez delas.

Ou seja, a reiterada violação das regras de competência na Lava Jato – que levou à esdrúxula situação de um juiz de Curitiba se considerar apto a julgar todos os casos de corrupção envolvendo o governo federal – não exigiu um desprezo formal às regras processuais. Bastou a interpretação ampliada do art. 76 do Código de Processo Penal. O juiz Sérgio Moro achava que todos os novos casos estavam conectados com os anteriores.

O art. 76 do CPP trata da chamada competência por conexão: aqueles casos em que a definição do juízo competente para julgar é dada por um caso anterior conexo a ele. Além de economizar recursos públicos, essa regra tem o objetivo de evitar decisões conflitantes. O dispositivo traz três hipóteses de competência por conexão: (i) se duas ou mais infrações tiverem sido praticadas por várias pessoas reunidas num mesmo lugar, em concurso ou umas contra as outras; (ii) se as infrações tiverem sido praticadas “para facilitar ou ocultar as outras, ou para conseguir impunidade ou vantagem em relação a qualquer delas”; e (iii) “quando a prova de uma infração ou de qualquer de suas circunstâncias elementares influir na prova de outra infração”.

O respeito às regras de competência é caminho para a efetividade do princípio do juiz natural, elemento indispensável de um julgamento imparcial. O art. 76 do CPP explica, por exemplo, por que todos os casos de atos antidemocráticos foram distribuídos no STF ao ministro Alexandre de Moraes. Ele era o juiz competente, a quem deviam ser encaminhados os novos indícios. No entanto, não sendo hipótese de conexão, entender que todo novo caso, como o da venda das joias, deve estar sob a jurisdição de Alexandre de Moraes – simplesmente porque Jair Bolsonaro estaria envolvido – é repetir o grande erro da Lava Jato, abrindo caminho para a impunidade. O País não merece reviver essa frustração.

A volta dos que não foram

O Estado de S. Paulo

Governo não tem alternativa senão apostar no setor privado ao ressuscitar o PAC, mas insiste em projetos que fracassaram no passado recente e custaram bilhões ao País e à Petrobras

Com pompa e circunstância, o governo lançou a terceira versão do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Desta vez, está previsto R$ 1,7 trilhão em obras e projetos de infraestrutura nas mais diversas áreas e em todos os Estados do País. “Hoje começa o meu governo. Até agora, o que nós fizemos foi reparar aquilo que tinha desandado”, disse o presidente Lula da Silva sobre aquela que é a maior das bandeiras petistas.

À exceção de Lula, ficou claro, na cerimônia de lançamento, haver uma preocupação do governo em mostrar que o PAC 3 não repetiria os erros de suas edições anteriores. A maior parte do investimento, um total de R$ 612 bilhões, virá do setor privado, por meio de concessões e parcerias público-privadas. A parte que caberá ao Tesouro será bem mais limitada, da ordem de R$ 60 bilhões por ano até 2026, e ficará dentro dos limites do arcabouço fiscal. Haverá prioridade para retomar obras inacabadas e projetos vinculados à transição energética e à agenda verde.

Ninguém, em princípio, seria capaz de criticar esses princípios, ainda mais em um país tão carente em infraestrutura. Os PACs anteriores, enquanto planos de investimento, tampouco eram iniciativas condenáveis. A má fama que acompanha os planos anteriores não diz respeito à intenção, mas à sua gestão e execução, ou seja, a fases posteriores ao lançamento. Lamentavelmente, não há nada a indicar que esses problemas não voltarão a se repetir.

A exemplo de seus antecessores, o programa atual conta com milhares de obras divididas em diferentes eixos e regiões. Não é um trabalho trivial acompanhá-las de perto e solucionar problemas de forma célere. Mais do que corrupção ou complicações legais ou jurídicas, deficiências no projeto inicial, falhas na programação de recursos e dificuldades técnicas de execução estão por trás da enorme lista de obras inacabadas no País, como já diagnosticou o Tribunal de Contas da União (TCU).

Viabilizar o PAC dependerá de financiamento. Com o espaço fiscal bastante limitado, o governo dependerá de agências reguladoras fortalecidas e marcos regulatórios e jurídicos seguros e estáveis para atrair o capital privado. Será preciso ter muito realismo para garantir uma taxa de retorno realmente atrativa, que supere a taxa básica de juros. No passado, o governo optou por apelar a empréstimos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), com juros subsidiados e bancados pelo Tesouro Nacional. Promete-se que, dessa vez, não será assim.

Há evidências, no entanto, de que o governo não está disposto a abandonar algumas das práticas que estão por trás de fracassos históricos atrelados ao PAC. Uma das principais é a enorme dependência de investimentos por parte de estatais, da ordem de R$ 343 bilhões – e a imensa maioria concentrada na Petrobras.

Entre os projetos incluídos no eixo de óleo e gás estão a retomada de estaleiros e a ampliação da capacidade da Refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco. Projetos como este, aliados à mão pesada do governo para controlar os preços de combustíveis, quase levaram a Petrobras à ruína no passado recente. Mesmo irrigada com subsídios, a indústria naval nunca foi capaz de chegar nem próximo da eficiência de concorrentes no exterior.

Outro mau exemplo é a retomada de Angra 3. Com um projeto que remonta ao regime militar e que soma quase 40 anos de construção, entre idas e vindas, o custo da usina nuclear aumentou exponencialmente, à medida que alternativas energéticas se tornavam mais baratas e economicamente viáveis. Sem a Eletrobras, agora nas mãos do setor privado, quem pagará o custo dessa escolha?

Em razão das limitações orçamentárias, o governo não tem alternativa senão apostar no setor privado como alavanca da nova edição do PAC. Por outro lado, opta por reeditar as mesmas políticas do passado esperando resultados diferentes por pura teimosia, recusando-se a reconhecer erros que custaram bilhões ao País e à sua maior empresa. São justamente esses aspectos, tão celebrados pelo presidente Lula, que ameaçam o sucesso do plano novamente. Dessa vez, não será por falta de aviso.

A revolta dos argentinos

O Estado de S. Paulo

Bem-sucedido nas primárias, extremista Javier Milei sintetiza a rebelião contra o ‘establishment’

Os argentinos estão a ponto de se rebelar contra o Estado, conforme se depreende do resultado das eleições para a escolha dos candidatos à presidência do país, em 22 de outubro.

Javier Milei, de extrema direita, angariou 30% dos votos válidos e atropelou as duas forças tradicionalmente rivais na política do país vizinho – o peronismo e a centro-direita, maculados pelo fracasso na condução da economia do país. A perspectiva de chegar em terceiro lugar na disputa presidencial dá a exata medida da profunda crise do peronismo.

A proposta de Milei de liberar a venda de órgãos é a menos chocante de sua inacreditável plataforma política, chamemos assim. Na hipótese de Milei ser eleito e conseguir implementá-la, o resultado prático será a desmoralização do establishment argentino, situação em que a política inexiste ou é apenas acessória do populismo.

Ao que parece, a irresistível ascensão de Milei é impulsionada pelos votos de jovens que não sabem o que é uma Argentina estável e próspera. São décadas de incúria, desmandos e corrupção que arruinaram a economia do país e minaram drasticamente a confiança dos cidadãos nos políticos e nos partidos. A alta abstenção, embora o voto seja obrigatório, reforça a sensação de desencanto e raiva.

A Argentina jamais esteve tão perto da ingovernabilidade, do caos econômico e da ruína democrática neste século. Nem mesmo quando a turba em desespero derrubou o governo de Fernando de la Rúa, em dezembro de 2001. Como sintetizou o jornal La Nación, a vitória de Milei nas primárias teve o efeito de um “terremoto”.

O surgimento de uma nova força política na Argentina, assentada no fortalecimento da democracia liberal e em propostas econômico-sociais coerentes e factíveis, traria confiança nos rumos do país. Eleitores, países vizinhos e a comunidade internacional tenderiam a aplaudir a terceira via. Nada disso se assemelha ao fenômeno Milei. Seu discurso contra as “castas” políticas vem acompanhado de promessas econômicas irresponsáveis, razão pela qual não surpreendem a desvalorização de 18% do peso e o aumento da taxa de juros no dia seguinte às primárias.

Sob a égide do Estado limitado e do livre-comércio, seu plano de governo oculta demônios capazes de apavorar os mais respeitáveis gestores e teóricos liberais. Milei quer eliminar o Banco Central, como meio de combater a inflação, e quer dolarizar de vez a economia – um passo além do que ocorreu nos anos 1990, com desfecho desastroso em 2001. O comércio seria liberalizado ao extremo. Os impostos e os gastos públicos sofreriam cortes ferozes, como se não houvesse subsídios sociais necessários num país em que metade da população é pobre. A dívida pública não é mencionada nas 34 páginas do plano.

Milei faz parte da onda populista de ultradireita, a mesma que gerou Donald Trump nos Estados Unidos, Jair Bolsonaro no Brasil e Viktor Orbán na Hungria. Não há dúvidas sobre seu desprezo pelo Estado de Direito e sobre a sandice de suas propostas econômicas, mas não será fácil para o peronismo e a centro-direita reconquistarem parte dos indignados que se entusiasmaram pelo candidato que promete implodir a Argentina.

 Primárias argentinas preocupam o mercado

Correio Braziliense

A vitória do candidato de extrema direita Javier Milei, nas eleições primárias, inquieta os agentes econômicos. O político que autodenomina anarcocapitalista pretende dolarizar a economia e fechar o banco central, medidas que prejudicariam o Brasil

É forte a aversão ao risco no mercado financeiro após o resultado das eleições primárias na Argentina, em razão da vitória do candidato de extrema direita Javier Milei, cujas principais propostas econômicas são dolarizar a economia e fechar o banco central do país. O político se apresenta como "anarcocapitalista".

A narrativa política de Milei também preocupa o mercado financeiro. Pretende proibir o aborto, legalizar a venda de órgãos e adotar outras medidas ultraconservadoras e polêmicas. A crise econômica desiludiu os argentinos com os partidos políticos e abriu as portas para Milei, que seduziu os jovens. O voto nas primárias, obrigatório para os adultos, é um ensaio geral para a eleição de 22 de outubro, uma indicação clara de quem é o favorito à Presidência.

A eleição de outubro afeta o enorme setor agrícola da Argentina, um dos maiores exportadores mundiais de soja, milho e carne bovina. São impactados os títulos públicos e as negociações do acordo sobre a dívida de 44 bilhões de dólares com o Fundo Monetário Internacional (FMI). A inflação argentina, que está 115,6% em 12 meses, com juros em 118% ao ano, deve disparar.

Somente neste ano, o peso argentino sofreu uma desvalorização de quase 40%. A dolarização da economia e o fim do câmbio negro são propostas que também seduzem a classe média argentina. Mas são medidas de curtíssimo prazo, que não enfrentam nenhum problema estrutural do país vizinho.

A Argentina ficaria totalmente dependente da política monetária dos Estados Unidos. Com isso, o Mercosul seria inviabilizado, mais uma vez, às vésperas de conseguir um acordo com a União Europeia. Se isso ocorrer, será um grande revés para a política de integração regional do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

As primeiras reações do mercado financeiro argentino ontem foram péssimas: a cotação do dólar blue, extraoficial, chegou a 670 pesos. A reação do Banco Central argentino foi subir a taxa de juros e fixar o câmbio oficial em 350 pesos, até outubro, quando ocorrerão as eleições. Entretanto, a dolarização informal já está em curso, por causa do clima de instabilidade política e da derrota do candidato peronista, que ficou em terceiro lugar.

Com adoção do dólar como moeda oficial pelo governo, a dolarização seria completa e o peso argentino deixaria de circular. O principal impacto, segundo os especialistas, seria sobre as pessoas de baixa renda, que passariam a receber seus salários também em dólar, sem precisar mais trocar as moedas, sujeitas às fortes oscilações das taxas de câmbio. O efeito mais imediato seria a estabilização dos preços, pois o governo do país não poderia mais emitir moeda. Teoricamente, os preços internos seriam equalizados aos preços dos produtos importados, para que haja competitividade e menos inflação.

O Brasil seria o país mais impactado por essa mudança. A Argentina é o terceiro maior parceiro comercial do Brasil. As duas nações representam 63% da área total da América do Sul, 60% de sua população e 61% do PIB. Obtivemos saldo comercial positivo de US$ 2,2 bilhões com a Argentina em 2022. Foram US$ 15,3 bilhões em exportações para o país vizinho contra US$ 13,1 bilhões em importações de mercadorias argentinas.

Milei obteve mais de 30,5% dos votos, muito acima do previsto, com o principal bloco conservador de oposição bem atrás, com 28%; e a coalizão governista peronista ficou em terceiro lugar, com 27%. Dentro da coalizão Juntos pela Mudança, a candidata conservadora Patrícia Bullrich, ex-ministra da Segurança, venceu o moderado prefeito de Buenos Aires Horácio Larreta, que prometeu apoiar a campanha dela. O ministro da Economia, Sergio Massa, candidato peronista, sofreu uma derrota anunciada: era o candidato errado no momento errado, pois quatro de cada 10 argentinos estão abaixo da linha de pobreza. Essa foi a maior derrota eleitoral dos peronistas na história.

 

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