O Globo
Gastos públicos aumentarão; com eles, a
tentação dos puxadinhos
‘Recebi,
pelo sistema oficial do governo, receitas suficientes para zerar o déficit
fiscal, sejam já realizadas, sejam as que estão por vir. O futuro a Deus
pertence. Nós não sabemos, diante do imponderável. Mas tem de ser algo
imponderável.’
A declaração é de Simone Tebet, ministra do
Planejamento. Que planeja com fé. Faz sentido, se olharmos para o Orçamento
apresentado e considerarmos tudo quanto se lhe promete pendurar até dezembro.
As “receitas que estão por vir” terão de ser divinais. Disso sabemos. Haja Deus
na causa.
Imponderável, tendo a ver com peso, é
aquilo que ora não se pode medir. Um elemento — de carga indefinível — que
influenciará; que talvez condene.
Imponderável é o imprevisível. Certo sendo
que o governo remeteu ao Congresso o Projeto de Lei Orçamentária Anual de 2024
sem que a LDO tenha sido votada e dependente de que nela se embuta a previsão
de teto solar para despesas condicionadas de pelo menos R$ 30 bilhões — há quem
as estime em R$ 40 bilhões. Sabe-se como começa. E como termina.
Do imponderável, a multiplicação dos mensuráveis. O imponderável como certeza. Gastos aumentarão; com eles, a tentação das exceções-puxadinhos. A carne é fraca. Assim vai desafiado, de largada, o arcabouço fiscal. Carcaça cujo voo curto talvez seja ainda menor.
É inquietante que a titular do Planejamento
fale em Deus ao tratar do porvir do Orçamento. Não que esteja errada. Recorre
ao Senhor para não se referir à proposta orçamentária como peça de ficção — com
viés para o fantástico. Certo sendo — se o aumento das despesas é uma constante
e se cortar gastos não compõe a fé — que a conta só fechará com baita
crescimento de arrecadação.
O déficit zero, cartaz da nova regra
fiscal, depende de dinheiros — muitos dinheiros — ainda em via de fabricação.
Depende da boa vontade do Parlamento. Tudo mui ponderável. Não barato. O futuro
a Lira pertencendo. Haja Deus.
Deus já deve estar de saco cheio — cantou
Almir Guineto. Cantou Arthur Lira que “o Brasil não pode ter medo da reforma
administrativa”. Tem cantado neste tom:
— Eu não estou pautando, mas há duas
maneiras de equilibrar suas contas: ou aumenta a arrecadação ou diminui as suas
despesas. A única maneira de controlar os seus gastos é com a reforma
administrativa.
Claro que está pautando. Ou tentando.
Tentando dirigir a agenda. A opção do governo é pelo equilíbrio via crescimento
de receitas. Ele, sob pressão, contrapõe-se — solando a grupos específicos —
como agente pela austeridade nas despesas. Agente, no mundo real, contrário à
taxação das offshores. Sendo também falso que a reforma administrativa —
necessária, mas que nunca integrou o conjunto de compromissos da chapa
presidencial eleita — consista no único jeito de conter gastos.
O futuro a Lira pertence. E ele é
perdulário com foco, zelador cioso dos tesouros do Parlamento.
Veja-se o capítulo das emendas parlamentares.
A previsão está em R$ 37,6 bilhões. Montante exclusivamente posto para
impositivas. Liristas e outros elmares, daqui até o fim do ano, pelejarão para
ter ao menos mais R$ 20 bilhões — trabalharão ao menos pela manutenção daquela
massa que era do orçamento secreto e que, disfarçando-se, foi redistribuída em
2023. Boa parte da qual despachada autoritariamente, à revelia de políticas
públicas e à margem dos mecanismos de fiscalização.
De uma reforma das emendas alcolúmbricas os
senhores do Congresso, pachecos incluídos, não querem cuidar.
Não desistirão dessa grana nem dos modos de
dela dispor. E o Planalto sabe. Joga o jogo da carochinha. Não à toa tendo
lançado para baixo — pela metade — o orçamento do Ministério da Integração e do
Desenvolvimento Regional. É a casa do espólio do orçamento secreto — cujo baque
orçamentário será compensado pela derrama de emendas nas codevasfs. Uma certeza
— mais uma — que materializa o Orçamento como obra de ficção. Vai inchar. Sem
vítimas, senão o povo.
(Já que falei em Codevasf e certeza, não
terá sido por falta de alertas: por meio de Juscelino Filho, o ministro das
Comunicações e dos Leilões Equestres, Lula levou o orçamento secreto para
dentro do governo. Não o fez inconscientemente.)
Outro exemplo de por que o Orçamento para
2024 é exercício ficcional a desafiar o madeiramento do arcabouço fiscal?
Considere-se o inscrito para o Fundo Eleitoral em ano de eleições municipais:
R$ 939,4 milhões. Foram R$ 4,9 bilhões para 2022. E, não existindo regra fiscal
— teto de gastos — para partidos políticos, jogue-se a inflação e saia seguro
de que não serão menos do que R$ 5,5 bilhões. Vai inchar.
Sim, o governo baixou o valor de modo a que
a ficção orçamentária forçasse o Congresso ao ônus de subir a régua. É certo
que não haverá constrangimentos para fazê-lo. O Planalto simulará resistência.
Etc. O futuro a Lira pertence. Deus nos proteja.
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