Correio Braziliense
Se a política não der resposta à "vida
banal" da sociedade, num processo em que as demandas dos cidadãos não são
levadas em conta, haverá uma onda popular antissistêmica
A aprovação da minirreforma eleitoral pela
Câmara, com algumas medidas cujos objetivos são eminentemente conservadores,
eticamente duvidosos e moralmente condenáveis, suscita reflexão profunda sobre
a atuação recente dos políticos em defesa de seus próprios interesses e a
qualidade das suas relações com a sociedade, a partir das políticas públicas. A
propósito, o professor Marco Aurélio Nogueira, doutor em ciência política pela
Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universidade Estadual
Paulista(Unesp), autor de As possibilidades da política e Em defesa da
política, defende a tese de que há três políticas que se correlacionam e
deveriam interagir de forma positiva, num ambiente democrático, sem embargo de
suas contradições: a dos políticos, a dos técnicos e a dos cidadãos.
Marco Aurélio, no seu livro mais recente, As ruas e a democracia — ensaios sobre o Brasil contemporâneo, também fala das demandas "hipomodernas" da sociedade e das dificuldades de o sistema político compreender e dar respostas satisfatórias às mudanças, o que vem sendo um fator de crise das democracias representativas no mundo. A questão é saber se as respostas dos políticos a isso estão sendo as mais adequadas.
A reação que estamos assistindo dos
políticos é a blindagem dos partidos e seus mandatos, que sentem como ameaçados
por regras que eles próprios criaram, quando foi necessário responder a
demandas por mais ética, transparência e austeridade na politica. Há uma clara
hegemonia no Congresso, sobretudo na Câmara, sob a presidência do deputado
Arthur Lira (PP-AL), dos políticos que veem a política como negócio, e não como
bem comum, para usar um conceito consagrado.
"A política como vocação", clássico
da ciência política, é uma conferência realizada por Max Weber em 1918 e
publicada em 1919, na Alemanha. Para o economista e jurista alemão, a política
é "o conjunto de esforços feitos visando à participação do poder ou a
influenciar a decisão do poder, seja entre Estados, seja no interior de um
único Estado". Quem se mete na política, grosso modo, quer poder, seja
para fins ideais, seja por interesses econômico-financeiros ou busca de
prestígio. Entretanto, para isso, a sociedade precisa se submeter à dominação
do Estado.
Estado e sociedade
Se o governo e suas políticas públicas não
dão respostas à "vida banal" da sociedade, num processo em que as
demandas dos cidadãos não são levadas em conta, haverá uma disfuncionalidade
que pode provocar, como já aconteceu, uma onda popular antissistêmica. A
blindagem dos políticos contra isso, ao se protegerem do eleitor em vez de irem
ao seu encontro, acaba levando aos tsunamis eleitorais, como o de 2018. Esse
filme já passou em vários países e, agora, está em cartaz na Argentina.
Weber divide os "políticos
profissionais" entre os que "vivem para a política" e aqueles
que "vivem da política". Seu raciocínio obedece ao bom senso: todo
cidadão pode e deve participar da vida política, mas nem todos têm tempo
disponível e recursos para isso. Por isso, "todo homem sério, que vive
para uma causa, vive também dela", o que não impede a diferenciação entre
os que têm a política como "bem comum" e os que a veem como negócio.
Paralelamente à existência dos políticos,
existe uma burocracia formada por funcionários e técnicos encarregados de
operar a máquina do Estado. Por essa razão, se estabelece entre os políticos
uma disputa pela ocupação de cargos e a distribuição de recursos do governo.
Nessa dinâmica, surge ainda uma camada de dirigentes partidários formada a
partir de critérios plutocráticos e que vão ocupar posições no governo ou na
máquina partidária. Para Weber, sem regras do jogo democráticas e controle
social, isso leva "à criação de uma casta de filisteus corruptos".
No Brasil, onde não existe regulamentação
do lobby, como nos Estados Unidos e alguns países da Europa, todos os políticos
defendem o "bem comum", ninguém assume a política como negócio, com
exceção, talvez, da bancada ruralista. O patrimonialismo, o cartorialismo e o
fisiologismo estão entranhados na nossa vida política porque são heranças de
nosso passado colonial e escravocrata.
Apesar disso, ao longo da história, o
Estado brasileiro constituiu uma burocracia estatal com características
weberianas, formada por "trabalhadores especializados, altamente
qualificados e que se preparam, durante muito tempo, para o desempenho de sua
tarefa profissional, sendo animados por um sentimento muito desenvolvido de
honra corporativa, em que se realça o sentimento da integridade".
O choque entre os políticos profissionais e
essa burocracia, que conhece o lado escuro da política como negócio, ocorre
quando a ética da responsabilidade, própria da burocracia estatal, e a ética
das convicções, que preside a ação dos políticos, geram uma contradição
disruptiva. As crises éticas e institucionais, via de regra, surgem nesse
contexto.
É aí que a entrada em cena dos cidadãos,
organizados em rede, como sociedade civil, e não apenas no processo eleitoral
ou nas suas agências tradicionais, pode fazer a grande diferença para
consolidar, ampliar e renovar o processo democrático. Por isso, a política de
cooptação de suas lideranças, a longo prazo, acaba sendo um tiro no pé da
política como bem comum.
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