O Globo
Se prevalecesse a tese de Mendonça e Nunes Marques, o 8 de janeiro se transformaria em uma baderna sem propósito, isentando o ex-presidente
O começo do julgamento dos vândalos de 8 de janeiro separou o Supremo Tribunal Federal em duas linhas opostas. Se fosse majoritária a tese dos ministros Nunes Marques e André Mendonça, de que não foi uma tentativa de golpe de Estado, o processo jamais chegaria ao ex-presidente Jair Bolsonaro. Se não há crime, não há criminoso. Se não foi tentativa de golpe, não existem golpistas, e muito menos o principal mentor do atentado à democracia. A tentativa de livrar Bolsonaro bem no início desse julgamento fracassou. A quinta-feira terminou com mais uma dor de cabeça para o ex-presidente: a informação publicada pela revista Veja de que o dinheiro da venda dos relógios foi entregue a ele “em mãos” pelo tenente-coronel Mauro Cid.
Marques e Mendonça usaram argumentos
rudimentares. Mendonça disse que um golpe de Estado não é só derrubar o
governo, mas ter um plano para estabelecer uma nova ordem. “Eu preciso definir
o que eu vou fazer com o Congresso, o que eu vou fazer com o STF, o que vai ser
feito com a imprensa, com a liberdade das pessoas, com o meio universitário”.
Ele disse que não vira isso nos “manifestantes”. Dado que ele não viu o
planejamento, não foi golpe.
A tese é um assalto à inteligência alheia.
Todos os atos golpistas que ocorreram durante o governo Bolsonaro e que
chegaram ao ápice no 8 de janeiro tinham um lema claro que estava nas faixas,
camisetas e palavras de ordem. Eles pediam a volta do AI-5. No Brasil, esses
três caracteres são suficientes para revelar o plano que o ministro Mendonça
não viu. Significa eliminar todos os direitos e garantias individuais, fechar o
Congresso, tirar os ministros indesejados do Supremo, censurar a imprensa,
invadir universidades, prender, torturar e matar os dissidentes. Esse era o
plano, era a “nova ordem”. AI-5 foi isso. Pedir a sua volta tem um inequívoco
significado. Para quem não entendeu a senha dos três caracteres malditos, os
golpistas foram ainda mais claros quando pediram em faixas e camisetas a
“intervenção militar”.
André Mendonça tentou um caminho
escorregadio, o de culpar o governo que aquela turba ameaçou. Ele disse que
fora ministro da Justiça e que havia se preparado para as manifestações de 7 de
setembro, nos anos anteriores, e não entendia por que essas providências não
foram tomadas. Foi quando o ministro Alexandre de Moraes lembrou que também
ocupara o mesmo cargo. “Com todo o respeito, Vossa Excelência querer falar que
a culpa do 8 de janeiro é do ministro da Justiça”. A propósito, as
manifestações para as quais Mendonça diz ter se preparado eram a favor do
governo ao qual servia. Não era uma multidão hostil e antidemocrática que
destruiu os prédios dos Três Poderes.
O que houve nesse início de julgamento não
foi apenas uma divergência jurídica. Se prevalecesse a tese de Mendonça e de
Nunes Marques o resultado seria isentar Jair Bolsonaro. O projeto era
transformar o 8 de janeiro em apenas uma baderna sem propósito, sem liderança,
sem periculosidade. Assim estaria protegido o chefe e inspirador da confusão.
Foram tentados diversos argumentos. Todos
sem sentido, mas na mesma direção. O de que não houve tentativa de golpe porque
ele não se consumou. O ministro Alexandre de Moraes respondeu com ironia,
dizendo que o crime é a tentativa de golpe. Se o golpe se consumasse eles não
estariam ali para julgar. Sustentaram também, que foi um movimento sem
liderança e planejamento. Isso contraria a realidade dos acampamentos que
ficaram três meses em frente aos quartéis, do chamado para a “festa da Selma”,
das provas de financiamento. Mas por que enfileirar argumentos inconsistentes?
Foi um negacionismo com propósito. Se fosse apenas um ataque anárquico, só os
executores pagariam a conta. Se o plano desse certo, difícil seria apagar tudo
o que Bolsonaro disse e fez para solapar a institucionalidade brasileira
durante os quatro anos do seu mandato.
Há muito o que Bolsonaro tem a acertar com
a Justiça nas diversas frentes de investigação. A delação de Mauro Cid vai
esclarecer muita coisa. A reportagem de capa da Veja, da repórter Marcela
Mattos, revela que Cid entregou a Bolsonaro diretamente o dinheiro da venda de
peças do acervo público. O ex-ajudante de ordens acha que isso foi imoral mas
não ilegal. Aí é que Cid se engana.
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