Liberais tentam se reinventar para sobreviver no mapa eleitoral
Sebastián Piñera já presidiu o Chile por duas
vezes e é um empresário afortunado, com patrimônio estimado em 3 bilhões de
dólares, equivalentes a mais de 15 bilhões de reais. Aos 73 anos poderia estar
aposentado, mas está inquieto. Desde que deixou o poder, em março do ano
passado, percorre capitais latino-americanas para submeter uma ideia à crítica
de líderes políticos, empresariais e ativistas locais.
— Creio naquilo que dizia Dante Alighieri: os
piores lugares do inferno estão reservados àqueles que se declaram neutros em
tempos de crise — vem repetindo, amparado nas alegorias do poeta italiano,
autor do clássico A Divina Comédia.
Dias atrás, em Buenos Aires, Piñera juntou-se
a Mauricio Macri, ex-presidente da Argentina, e a dezenas de antigos chefes de Estado,
parlamentares, empresários e acadêmicos para discutir a reconstrução da direita
na América Latina.
O projeto é ambicioso. Prevê agenda comum,
supranacional, baseada em ações “claras, transparentes e comunicadas” entre os
engajados — 21 partidos inscreveram-se até a semana passada.
A proposta é inédita. Pela primeira vez, líderes da direita tradicional preocupam-se em coordenar posições na disputa pelo poder na região, dentro das regras do regime democrático.
Se vai dar certo, nem Piñera nem Macri e os
demais sabem, mas na reunião de Buenos Aires todos acharam válido tentar. Eles
têm bons motivos.
O principal é a percepção de que está em jogo
a sobrevivência das famílias e dos núcleos políticos que, tradicionalmente,
sustentam o ideário da direita liberal nos palanques e nas urnas da América
Latina. Sentem-se desafiados por um trio de adversários.
O mais antigo é a esquerda que, pela primeira
vez, domina governos das cinco principais economias latinas (Brasil, México,
Colômbia, Argentina e Chile).
O competidor emergente é a extrema direita
radicalizada. Ela tem conseguido capitalizar votos com eficiência sem paralelo,
surfando ao estilo “trumpista” numa “rebeldia conservadora”. Seus ícones na
América do Sul são o argentino Javier Milei, o chileno José Antonio Kast e o
brasileiro Jair Bolsonaro.
Não têm partidos, mas possuem votos. Corroem a base eleitoral de uma direita
conservadora, secular, dona de grandes estruturas partidárias, mas cada vez
mais nanica em votos. Por óbvio, não foram convidados ao tango político
portenho.
O rival percebido como mais perigoso, porém,
estaria na casta da direita tradicional latino-americana. São os liberais
aninhados em berço esplêndido, na autocrítica de Dionisio Gutiérrez, ativista
guatemalteco e empresário bilionário, herdeiro de um império de agricultura,
energia e comunicações na América Central:
— A partir da crise financeira de 2008, nós,
os liberais, nós, da direita, nos acomodamos e deixamos de defender os valores
e princípios da democracia que pensamos estar estabelecidos com segurança. Não
foi assim.
— Olhem como estamos hoje, com mais da metade
da América Latina perdida e outra metade em perigo — provocou, em Buenos Aires.
— Nós, da elite, dormimos, abandonamos a política, nos acomodamos. A elite
acadêmica ficou nas bibliotecas, e a sociedade civil se dispersou. As elites
econômicas seguiram em suas bolhas, ocupadas com suas empresas, esquecendo-se
de que, se perderem seus países, também vão perder suas empresas.
Gutiérrez assumiu a coordenação do projeto
que define como “refundação liberal”: “Teremos propostas coordenadas e
comunicadas de cada país e, em seguida, vamos chutar o traseiro dos rapazes das
elites econômicas, dizendo: ‘Vejam, senhores, aqui faltam uns centavitos’. Será
para formar partidos, montar boas instituições dedicadas à formação de
tecnocratas e de dirigentes políticos, enfim, uma nova geração que seja capaz
de nos governar melhor”.
Três de cada quatro líderes políticos
insistiram na necessidade de que o redesenho da direita liberal latina tenha
foco na eficácia dos programas sociais e ênfase na segurança pública. Em alguns
países, advertiram, o narcotráfico já é um dos cinco maiores empregadores.
Ronaldo Caiado, governador de Goiás, reclamou
da cegueira deliberada sobre o tema no Brasil: “Infelizmente, não querem ver.
No entanto, o narcotráfico está avançando com parlamentares do narcotráfico,
magistrados do narcotráfico e advogados do narcotráfico. Antes, o tráfico
queria parcerias com os governos; hoje, quer assumir os governos”.
A direita liberal tenta se reinventar para
sobreviver no mapa eleitoral da América Latina.
Publicado em VEJA de 6 de outubro de 2023, edição nº 2862
Um comentário:
Uma direita liberal....
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