sábado, 7 de outubro de 2023

Miguel Reale Júnior* - O STF e a efetividade de direitos fundamentais

O Estado de S. Paulo

Na questão da criminalização do aborto, não se trata de invasão de competência do Legislativo, mas de atribuição originária do STF, como dispõem a Constituição e a lei

A ministra Rosa Weber entendeu que, parcialmente, não se coadunam com a Constituição os artigos 124 e 126 do Código Penal, relativos ao autoaborto, bem como o ato de terceiro que provoca aborto consentido, no caso de interrupção da gestação nas primeiras 12 semanas.

Acusa-se o Supremo Tribunal Federal (STF) de ativismo, por ter assumido tarefa que caberia ao Congresso Nacional. Cumpre, então, explicar não se tratar de invasão de competência do Legislativo, mas de atribuição originária do STF, como dispõem a própria Constituição e a lei.

No artigo 102, § 1.º da Constituição se estabelece caber ao STF julgar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) decorrente da Constituição, “na forma da lei”. Essa é a Lei n.º 9.882/99, que, ao regular a matéria, estatuiu que a ADPF terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do poder público, podendo ter por objeto lei anterior à Constituição. O conteúdo da lei deve estar alinhado com os limites fixados na Constituição, cabendo ao STF o exame desse alinhamento.

Dessa maneira, o STF, na missão de proteção dos direitos fundamentais, pode e deve excluir normas impeditivas de sua efetividade. O STF, mais que guardião da Constituição, é agente propulsionador da eficácia dos preceitos nucleares da Constituição, desobstruindo caminhos para sua implantação.

No caso, a ação proposta pelo PSOL solicitava interpretação de normas dos artigos 124 e 126 do Código Penal, que, ao criminalizar o autoaborto, viola a igualdade fundada na não discriminação baseada no sexo, o direito ao próprio corpo, a liberdade de planejamento familiar, a saúde e a preservação da integridade física.

O conflito entre valores – de um lado, a proteção da vida desde a concepção e, de outro, a proteção da autonomia e da saúde da mulher – há de ser resolvido por via da regra da proporcionalidade. Com a criminalização do autoaborto iguala-se a proteção do feto à da pessoa nascida com vida (quando, só então, se adquire personalidade jurídica), com desprezo a outros direitos fundamentais da mulher.

Para Rosa Weber, compete à mulher tomar a decisão pela maternidade, sendo uma escolha, e não uma obrigação coercitiva, conforme a autodeterminação privada, uma das expressões da dignidade da pessoa humana. Na ponderação entre valores constitucionais, conclui-se dever preponderar o direito à integridade física e psíquica da mulher e à autonomia no exercício da liberdade reprodutiva.

De outra parte, se a incriminação de uma conduta deve exercer finalidades preventiva e retributiva, nenhuma das duas se concretiza com a criminalização do aborto, conforme dados da Pesquisa Nacional de Abortos (PNA), realizada em 2010, 2016 e 2021, e da Justiça em Números, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

O aborto no Brasil é fato comum, realizado com frequência por mulheres de todas as idades, religiões, classes sociais, regiões e raças, casadas ou solteiras, já mães ou não, mas predominando mulheres em vulnerabilidade social, pobres, negras, indígenas e de baixa escolaridade.

Cerca de 10% das mulheres em 2021 disseram ter feito um aborto na vida; eram 15% em 2010 e 13% em 2016. Assim mesmo, esses números revelam que 1 em cada 7 mulheres, de 15 a 39 anos, realizou aborto clandestino, a forma possível de interrupção da gravidez.

Graves são as consequências do aborto clandestino, pois cerca de 50% deles terminam em internação para curetagem, sobrecarregando o sistema público de saúde. Os dados da PNA indicam haver 200 mil internações por ano em decorrência de abortos clandestinos, ou seja: 2 em cada 5 mulheres que abortaram precisaram ser hospitalizadas. O aborto clandestino vem a ser, neste quadro, a quarta causa da mortalidade feminina. Em face desta realidade, o relatório da PNA recém-publicado conclui que o aborto permanece como um problema de saúde pública, por sua magnitude e sua persistência.

De outro lado, há “descriminalização

de fato”, pois, malgrado se clamar pela penalização do aborto, é diminuta a instauração de persecução penal. Considerada a existência de cerca de 500 mil abortos por ano, sendo quase metade conhecida em vista da necessidade de internação hospitalar, entre 2014 e 2021 houve 2.553 processos criminais em todo o Brasil. Rosa Weber traz o número de 566 casos novos no Judiciário entre 2020 e 2023. Isto é: de 500 mil abortos anuais, apenas 566, em três anos, foram levados às barras dos tribunais, a mostrar que a reprovação moral não se traduz em submissão das mulheres a processo criminal, indicando que a sociedade e as autoridades não reconhecem cunho penal no fato.

Em suma: o STF não invade competência, apenas zela pelo exercício de direitos fundamentais. A criminalização não previne nem reprime, apenas causa estigma social e obstáculo ao aborto seguro. A questão complexa do aborto exige abordagem interdisciplinar e política pública de prevenção e de atendimento às mulheres, mormente as das camadas necessitadas, na realização do aborto seguro.

*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça

 

 

Um comentário:

Daniel disse...

Lógico e convincente!