Valor Econômico
Nessa toada, os congressistas vão se
apropriar de fatias cada vez maiores do orçamento, num processo em que não há
preocupação com a qualidade do gasto
O processo de captura do orçamento por meio
das emendas parlamentares segue em curso neste ano, afetando a qualidade e
reduzindo a transparência do gasto público. Se totalmente executadas, a
combinação das emendas individuais, de bancada e de comissão vai atingir R$
35,8 bilhões em 2023, mais que o recorde de R$ 29,3 bilhões alcançado em 2021,
em valores corrigidos pela inflação, segundo levantamento do economista Marcos
Mendes, pesquisador associado do Insper. Em 2022, foram R$ 29 bilhões.
O número de R$ 35,8 bilhões leva em conta a dotação orçamentária atualizada, enquanto os anteriores contemplam os valores pagos em cada ano, incluindo restos a pagar de exercícios anteriores. “Havendo contingenciamento ou não execução de emendas até o fim do ano, o valor em 2023 ficará um pouco mais baixo do que os R$ 35,8 bilhões, mas duvido que fique menor que o dos anos anteriores”, diz Mendes.
O recorde poderá ser atingido mesmo com o fim
das chamadas emendas de relator, que ficaram conhecidas como orçamento secreto,
julgado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em dezembro de
2022. Metade das emendas de relator foi transformada em emendas individuais
obrigatórias, observa Mendes. “Outra parte virou emenda de comissões. Um
montante de aproximadamente R$ 10 bilhões voltou para o controle do Executivo,
mas, por acordo político, será executado em despesas de interesse dos parlamentares.”
O resultado? “É como se as emendas de relator
continuassem a existir”, mas sem a necessidade de identificá-las com o código
RP9, diz ele. “Agora há despesas com todas as características de emenda
parlamentar misturadas com as despesas discricionárias [aquelas sobre as quais
o governo tem controle] do Poder Executivo”, afirma Mendes, chefe da assessoria
especial do ministro da Fazenda de 2016 a 2018.
As emendas individuais podem chegar a R$ 21,2
bilhões neste ano, enquanto as de bancada (de autoria das bancadas dos Estados)
devem ficar em R$ 7,7 bilhões. De pagamento obrigatório, as duas podem atingir
R$ 28,9 bilhões em 2023. Do ponto de vista fiscal, isso aumenta a rigidez do
gasto, diz Mendes. “Em um orçamento em que a despesa discricionária é de R$ 195
bilhões, essas emendas consomem 14% desse total”, nota ele, para quem há uma
perda significativa em termos de “qualidade e legalidade” das despesas. Um dos
problemas é que elas atrapalham o planejamento do gasto. “Em vez de o
Ministério da Saúde planejar uma rede hierarquizada de assistência à saúde, com
hospitais regionais de diferentes graus de complexidade, os parlamentares vão
decidindo onde construir hospitais”, observa Mendes. “Há também o excesso de
provisão de serviços públicos (cisternas, ambulâncias, asfaltamento) nos
municípios que têm representante no Congresso e escassez nos que não têm. Além
disso, os casos de corrupção pipocam todos os dias.”
Por fim, do ponto de vista político, cria-se
um desequilíbrio entre poderes, afirma ele, notando que “o Congresso manda no
Orçamento, mas não é responsabilizado pelas consequências negativas do
desequilíbrio fiscal, enquanto o Executivo paga o custo político da inflação e
dos juros altos decorrentes desse problema”. Há também as chamadas emendas de
comissão, cujo pagamento não é obrigatório. De autoria das comissões
permanentes da Câmara dos Deputados e do Senado, elas podem chegar a R$ 6,9
bilhões neste ano.
As emendas parlamentares também respondem por
uma fatia expressiva do investimento federal, comprometendo a qualidade desses
gastos. Neste ano, elas devem equivaler a 28% de um total de R$ 72,6 bilhões a
serem investidos, considerando os valores empenhados que aparecem no Painel do
Orçamento da União, de acordo com o levantamento de Mendes. O empenho é a etapa
orçamentária em que se reserva o dinheiro para pagar as obras ou os serviços a
serem executados. Em 2022, as emendas parlamentares corresponderam a 19% do
investimento; em 2020 e 2021, a fatia ficou na casa de 40%.
Mendes lembra que as emendas parlamentares
para esse fim têm como características investimentos pulverizados, de pequeno
valor. Cada deputado e cada senador direcionam os recursos para obras
tipicamente municipais, diz ele. “Nós vivemos em uma federação. Investimentos
em asfaltamento de ruas, muro de arrimo ou construção de quadra esportiva devem
ser feitos pelo município, com dinheiro do município. O Orçamento federal é
para fazer investimentos de impacto federal: rodovias e ferrovias
interestaduais, presídios de segurança máxima, monitoramento ambiental por
satélites.” Em resumo, os recursos destinados por parlamentares para o
investimento tendem a ser mal alocados, voltados para obras de caráter
paroquial.
O que já é ruim pode piorar. Na semana
passada, o deputado Danilo Forte (União Brasil-CE), relator do projeto da Lei
de Diretrizes Orçamentárias (LDO), disse que pretende criar um novo tipo de
emenda parlamentar, desta vez destinada às bancadas partidárias do Congresso.
“Se aprovada essa nova modalidade, voltaremos a ter as emendas de relator, só
que com novo nome”, diz Mendes, para quem “evidentemente” haverá uma negociação
sobre a alocação dos recursos entre os líderes partidários, o relator do orçamento
e os presidentes das duas Casas.
“Em nenhum lugar do mundo as emendas
parlamentares têm a dimensão do que ocorre no Brasil, seja em número de
emendas, seja em valores”, afirma ele, acrescentando que a ideia de que o
Parlamento determina o orçamento em todos os países democráticos é um engodo.
“O padrão é o Executivo propor o orçamento e o Legislativo discutir a
consistência das projeções e a alocação setorial dos recursos, deslocando
recursos da educação para a saúde, ou vice-versa, por exemplo.” Nos países em
que os parlamentares fazem indicação de verbas para suas bases, como Estados
Unidos e Portugal, os valores são muito menores que no Brasil, diz Mendes. “Em
um levantamento que fiz no ano passado, nos EUA as emendas paroquiais
representam 2,3% das despesas discricionárias; no Brasil são mais de 14%. Em
Portugal, são apresentadas menos de 300 emendas por ano; no Brasil esse número
fica próximo de 7 mil.”
Nessa toada, os parlamentares vão se
apropriar de fatias cada vez maiores do orçamento, num processo pouco
transparente, em que não há nenhuma preocupação com a qualidade das despesas
públicas.
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