Valor Econômico
Toda atenção é pouca, pois os passos no
sentido do legalismo autocrático começam muitas vezes devagar, um aqui, outro
acolá
Na medida em que 2024 se avizinha, a questão
do equilíbrio entre os Poderes da República ganha espaço. Fraco, incompetente e
inoperante, o governo de Jair Bolsonaro, com a ajuda das vozes estridentes de
seus seguidores - muitas delas falaciosas -, fez das constantes críticas ao STF
sua principal batalha com o intuito de desviar a atenção da própria nulidade.
Criou, com isso, uma espécie de clivagem que continua reverberando e ganhando
terreno na sociedade brasileira.
A pesquisa Datafolha divulgada na semana
passada é sintomática. Mostra o aumento dos que reprovam a atuação da Suprema
Corte em comparação com a pesquisa anterior, de fins de 2022. A reprovação
passou dos 31% para 38%, enquanto que o percentual de aprovação caiu de 31%
para 27%. Surgiu poucos dias depois do Senado Federal ter dado sinal positivo à
Proposta de Emenda Constitucional (PEC) do senador Oriovisto Guimarães (Podemos
- PR) que proíbe o STF de adotar decisões monocráticas (de apenas um ministro da
Corte) destinadas a suspender atos do Poder Executivo ou do Poder Legislativo.
Só decisões tomadas pelo colegiado do Supremo passariam a ter efeito.
A PEC em si não deixa de fazer sentido porque ajuda a alinhar o poder entre os Poderes. O problema não está propriamente na proposta que depende agora de aprovação na Câmara dos Deputados, mas sim no precedente. Pode ser usada como justificativa para abrigar as várias PECs que circulam pelos corredores do Congresso Nacional com a intenção de comprometer a legitimidade do STF de decidir em última instância na condição de protetor dos preceitos constitucionais.
No final de setembro, recorde-se, um grupo de
175 deputados federais protocolou a “PEC do Equilíbrio entre os Poderes” que
permitiria ao Congresso derrubar as decisões do STF consideradas exorbitantes à
luz do que os parlamentares entendessem como limites constitucionais. Ou seja,
caberia ao Poder Legislativo e não ao Poder Judiciário “julgar” sobre matérias
inscritas na Constituição do país. A proposta fere uma das cláusulas pétreas do
artigo 60 da Constituição Federal, aquela que versa justamente sobre a separação
dos Poderes. O Judiciário existe para julgar, o Legislativo para criar leis e o
Executivo para administrar.
Outras propostas e ideias no sentido de mudar
o funcionamento do STF têm sobressaído. Por exemplo, a sugestão do presidente
do Senado, senador Rodrigo Pacheco, que defende o aumento da idade mínima para
ingresso no STF, para além dos 35 anos atuais, e fixação de prazo para o
mandato dos ministros. Hoje, o mandato termina com a aposentadoria compulsória
aos 75 anos de idade.
Uma PEC apresentada pelo senador Plínio
Valério (PSDB-AM), em tramitação no Senado prevê mandato de oito anos para os
ministros do STF sem direito à recondução. Se aprovada, seria sopa no mel para
os chefes do Poder Executivo, pois poderiam ter a prerrogativa legal de contar
com a totalidade de ministros de sua indicação no Supremo no primeiro governo e
no segundo, no caso de serem reeleitos.
A limitação do mandato de membros das cortes
constitucionais é comum em vários países da Europa, com a vigência concomitante
de pesos e contrapesos com vistas a proteger o Judiciário das influências
políticas. Preservar as democracias liberais - atenção pessoal do mercado, não
confundir com liberalismo econômico - requer vontade e esforço conjunto na
proteção constitucional dos direitos fundamentais. A deterioração dos cuidados
com aqueles direitos abre margem para inconstitucionalidades, sem que se tenha
consciência do perigo latente. Merece vigilância qualquer tentativa de subjugar
o Poder judiciário em prol dos interesses de determinado grupo político.
Uma prática perigosa, a das mudanças da
Constituição pelo Legislativo, virou corriqueira
As chamadas democracias iliberais, também
qualificadas de legalismo autocrático, seguem o mesmo modelo: uma corte suprema
nas mãos do Executivo ou do Legislativo, ou de ambos. Foi assim que começou na
Venezuela de Hugo Chaves, em 1999, quando uma Assembleia Nacional Constituinte
substituiu a Corte Suprema de Justiça pelo Tribunal Supremo de Justiça com o
aumento no número de ministros e mandato fixo, além de outras providências que
colocaram pouco a pouco o Supremo no colo do Executivo venezuelano. Este passou
a dispor de poder absoluto para convocar referendos, destituir legisladores,
dissolver o Congresso e até declarar como legítima a apropriação do território
de um país vizinho.
Outro exemplo conhecido é o da Hungria, cujo
Poder Executivo também se fortaleceu com o enfraquecimento deliberado do
Tribunal Constitucional a partir de 2010, ano em que o Fidesz, partido de
Viktor Orbán, venceu as eleições com 68% das cadeiras do Parlamento, já então
transfigurado em agremiação de direita (era de esquerda, quando Orbán venceu
pela primeira vez, em 1998). Desde 2010, o primeiro-ministro vem se eternizando
no cargo, com a ajuda do Fidesz. Uma das medidas tomadas desde o início foi a
de aumentar o número de ministros na Corte de 11 para 15 e de reduzir a idade
da aposentadoria compulsória de modo a abrir espaço para os aliados. Também foi
criado o Departamento Judiciário Nacional a nível do Executivo para controlar
as decisões do Tribunal Constitucional.
Como se vê, a má intenção dos políticos que
querem se perpetuar no poder, sem prestar contas à sociedade, não tem viés
ideológico, apenas autocrático. Toda atenção, portanto, é pouca, pois os passos
no sentido do legalismo autocrático começam muitas vezes devagar, um aqui,
outro acolá. A Constituição do Brasil já foi modificada pelo Legislativo 131
vezes desde 1992 apenas com emendas constitucionais, sem contar outras
iniciativas. Uma prática perigosa que virou corriqueira.
O presidente Rodrigo Pacheco pode estar bem
intencionado, mas ao defender mudanças no STF deveria ter em mente não apenas o
circunstancial, mas as consequências e implicações futuras, passíveis de
manipulações que coloquem em risco a democracia no país. A aposentadoria
compulsória por idade ainda é a melhor forma de se preservar a independência da
Corte.
Bolsonaro está inelegível por um bom tempo,
mas não para sempre. Conhecendo suas ideias e os ataques que faz ao Supremo,
não dá para ignorar os sinais inequívocos de simpatia que ele tem pela
autocracia. Se dúvidas havia, foram dissipadas no domingo, em Buenos Aires, nos
poucos segundos de glória rescaldada que Javier Milei lhe concedeu. Com largo
sorriso no rosto, Bolsonaro cumprimentou efusivamente Viktor Orbán, um dos
poucos líderes que lhe dá atenção, e denunciou-se diante das câmaras de TV, ao
lado do ídolo: “Nós temos muita coisa em comum”.
A coluna deseja aos leitores Boas Festas e que o Novo Ano seja pródigo em grandes conquistas! Feliz 2024!
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