Valor Econômico
A ideia neoliberal, claríssima no discurso de
Milei, é de que o governo deve privatizar empresas estatais, desregulamentar
mercado financeiro e de trabalho, acabar com subsídios, reduzir alíquotas de
importação e estimular o livre-comércio
O governo Alberto Fernández, que terminou
domingo na Argentina, foi um desastre, não promoveu crescimento econômico,
endividou o país e o levou a uma inflação anual a 140%. Mas o governo de Javier
Milei começou domingo congelando até os ossos dos argentinos atentos.
As primeiras medidas econômicas do novo
governo devem ser anunciadas hoje pelo ministro da Economia, Luis Caputo. É
possível que haja recuos em relação a promessas de campanha, visto que Milei já
recuou das ideias de dolarizar a economia, fechar o Banco Central, sair do
Mercosul e cortar relações com Brasil e China.
A mensagem do discurso de posse, porém, foi assustadora. Milei disse que nenhum governo recebeu herança pior que a sua, que “não há dinheiro” e que a solução será um radical programa de austeridade que deve sufocar os argentinos com estagflação e desemprego durante 18 a 24 meses. Só então os cidadãos poderão começar colher os benefícios do sacrifício. Milhares de pessoas ouviram esses anúncios em frente ao Congresso balançando bandeiras azuis e brancas e gritando “liberdade”.
Com cabeleira cuidadosamente despenteada e
costeletas anos 1970, faltou Milei gritar “o neoliberalismo não está morto”,
incluindo no fim da frase o palavrão que ele repete desde a campanha eleitoral.
De fato, o que ele propõe nada mais é do que um programa neoliberal, adotado
sem sucesso por mais de 40 anos em quase todo o Ocidente, que caiu em desgraça
no século XXI e foi sepultado durante a pandemia da covid-19.
O professor José Luis Oreiro, da Universidade
de Brasília, um crítico feroz dessa política econômica, em artigo, define o
neoliberalismo: é um termo de amplo espectro que tem como traço fundamental a
crença de que a prosperidade econômica é resultante da liberdade individual do
empreender investir e trabalhar. Assim, o bem-estar coletivo seria resultado da
iniciativa individual, desde que a concorrência livre seja observada e
garantida, sem intervenção estatal que levaria à ineficiência e à redução do ritmo
de crescimento.
O radical programa ultraneoliberal de
austeridade de Milei, segundo ele, implicará um ajuste fiscal poderoso, com
cortes de gastos do governo, cujo ônus recairá sobre o Estado, e não sobre o
setor privado. Ele está certo quando fala da situação catastrófica do país. A
dívida externa, por exemplo, está em US$ 280 bilhões. Mas certamente será uma
façanha se o choque fiscal recessivo criar rapidamente condições para pagamento
dessa dívida.
A ideia neoliberal, claríssima no discurso de
Milei, é de que o governo deve privatizar empresas estatais, desregulamentar
mercado financeiro e de trabalho, acabar com subsídios, reduzir alíquotas de
importação e estimular o livre-comércio, além de cortar suas próprias despesas.
Feito isso, naturalmente seriam estimulados o investimento e a inovação, com
crescimento da economia e melhoria do emprego e da renda. Essa é a crença que
norteia as falas de Milei. Se ele vai mantê-la ao longo do governo são outros
500. Na prática, vai se defrontar com a resistência da sociedade argentina.
Afinal, aqueles que balançam bandeiras querem sair logo da crise e podem não
ter paciência para esperar os resultados.
Durante as quatro décadas em que foi
predominante, o neoliberalismo não apresentou os resultados esperados. O
crescimento dos países ricos caiu significativamente em relação aos anos
gloriosos, de 1950 a 1970, quando prevalecia no Ocidente um capitalismo
socialmente administrado. Nesse período, o Estado foi agente regulador de
mercado e desempenhou papel importante no planejamento do investimento e na
administração da demanda para manter a economia funcionando o mais perto
possível do pleno emprego. A partir dos anos 1980, porém, com as políticas
neoliberais, a prosperidade do capitalismo deixou de ser compartilhada,
pioraram os índices de distribuição de renda e a desregulamentação financeira
pôs fim a um longo período de estabilidade dos mercados. Vieram então as crises
financeiras de 1987 nos EUA, com falência de instituições de poupança, a crise
asiática nos anos 1990, a das empresas ponto com em 2001 e o grande colapso de
2008, com a falência do banco Lehman Brothers.
No Brasil, uma recente tentativa de adoção de
medidas radicalmente neoliberais, a partir de 2016, terminou sem resultados.
Congelaram-se as despesas do governo por dez anos, com o famigerado teto de
gastos, inclusive as sociais, e inscreveu-se o regime fiscal na Constituição,
algo inédito no mundo. Em pouco tempo, sem que os efeitos sobre o déficit
público fossem os esperados, surgiram as sequelas do congelamento:
desfinanciamento do SUS, sucateamento de ensino público, universidades e
institutos de pesquisa, desindustrialização e queda do investimento público.
A recente experiência brasileira, como outras pelo mundo, mostra que a austeridade e o ajuste fiscal são necessários, mas precisam ser adotados sem radicalismos. As sociedades, principalmente nos países emergentes, não suportam por muito tempo o impacto recessivo da busca desesperada do equilíbrio fiscal. Milei parece não acreditar nisso e diz não haver espaço para gradualismos. Seus discursos de campanha e posse espalharam um verdadeiro terrorismo fiscal, preocupado apenas com quantidade do gasto, sem dar atenção à qualidade. Los hermanos vão precisar de muita sorte.
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