terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Pedro Cafardo - No discurso, Milei aposta em projeto ultraneoliberal

Valor Econômico

A ideia neoliberal, claríssima no discurso de Milei, é de que o governo deve privatizar empresas estatais, desregulamentar mercado financeiro e de trabalho, acabar com subsídios, reduzir alíquotas de importação e estimular o livre-comércio

O governo Alberto Fernández, que terminou domingo na Argentina, foi um desastre, não promoveu crescimento econômico, endividou o país e o levou a uma inflação anual a 140%. Mas o governo de Javier Milei começou domingo congelando até os ossos dos argentinos atentos.

As primeiras medidas econômicas do novo governo devem ser anunciadas hoje pelo ministro da Economia, Luis Caputo. É possível que haja recuos em relação a promessas de campanha, visto que Milei já recuou das ideias de dolarizar a economia, fechar o Banco Central, sair do Mercosul e cortar relações com Brasil e China.

A mensagem do discurso de posse, porém, foi assustadora. Milei disse que nenhum governo recebeu herança pior que a sua, que “não há dinheiro” e que a solução será um radical programa de austeridade que deve sufocar os argentinos com estagflação e desemprego durante 18 a 24 meses. Só então os cidadãos poderão começar colher os benefícios do sacrifício. Milhares de pessoas ouviram esses anúncios em frente ao Congresso balançando bandeiras azuis e brancas e gritando “liberdade”.

Com cabeleira cuidadosamente despenteada e costeletas anos 1970, faltou Milei gritar “o neoliberalismo não está morto”, incluindo no fim da frase o palavrão que ele repete desde a campanha eleitoral. De fato, o que ele propõe nada mais é do que um programa neoliberal, adotado sem sucesso por mais de 40 anos em quase todo o Ocidente, que caiu em desgraça no século XXI e foi sepultado durante a pandemia da covid-19.

O professor José Luis Oreiro, da Universidade de Brasília, um crítico feroz dessa política econômica, em artigo, define o neoliberalismo: é um termo de amplo espectro que tem como traço fundamental a crença de que a prosperidade econômica é resultante da liberdade individual do empreender investir e trabalhar. Assim, o bem-estar coletivo seria resultado da iniciativa individual, desde que a concorrência livre seja observada e garantida, sem intervenção estatal que levaria à ineficiência e à redução do ritmo de crescimento.

O radical programa ultraneoliberal de austeridade de Milei, segundo ele, implicará um ajuste fiscal poderoso, com cortes de gastos do governo, cujo ônus recairá sobre o Estado, e não sobre o setor privado. Ele está certo quando fala da situação catastrófica do país. A dívida externa, por exemplo, está em US$ 280 bilhões. Mas certamente será uma façanha se o choque fiscal recessivo criar rapidamente condições para pagamento dessa dívida.

A ideia neoliberal, claríssima no discurso de Milei, é de que o governo deve privatizar empresas estatais, desregulamentar mercado financeiro e de trabalho, acabar com subsídios, reduzir alíquotas de importação e estimular o livre-comércio, além de cortar suas próprias despesas. Feito isso, naturalmente seriam estimulados o investimento e a inovação, com crescimento da economia e melhoria do emprego e da renda. Essa é a crença que norteia as falas de Milei. Se ele vai mantê-la ao longo do governo são outros 500. Na prática, vai se defrontar com a resistência da sociedade argentina. Afinal, aqueles que balançam bandeiras querem sair logo da crise e podem não ter paciência para esperar os resultados.

Durante as quatro décadas em que foi predominante, o neoliberalismo não apresentou os resultados esperados. O crescimento dos países ricos caiu significativamente em relação aos anos gloriosos, de 1950 a 1970, quando prevalecia no Ocidente um capitalismo socialmente administrado. Nesse período, o Estado foi agente regulador de mercado e desempenhou papel importante no planejamento do investimento e na administração da demanda para manter a economia funcionando o mais perto possível do pleno emprego. A partir dos anos 1980, porém, com as políticas neoliberais, a prosperidade do capitalismo deixou de ser compartilhada, pioraram os índices de distribuição de renda e a desregulamentação financeira pôs fim a um longo período de estabilidade dos mercados. Vieram então as crises financeiras de 1987 nos EUA, com falência de instituições de poupança, a crise asiática nos anos 1990, a das empresas ponto com em 2001 e o grande colapso de 2008, com a falência do banco Lehman Brothers.

No Brasil, uma recente tentativa de adoção de medidas radicalmente neoliberais, a partir de 2016, terminou sem resultados. Congelaram-se as despesas do governo por dez anos, com o famigerado teto de gastos, inclusive as sociais, e inscreveu-se o regime fiscal na Constituição, algo inédito no mundo. Em pouco tempo, sem que os efeitos sobre o déficit público fossem os esperados, surgiram as sequelas do congelamento: desfinanciamento do SUS, sucateamento de ensino público, universidades e institutos de pesquisa, desindustrialização e queda do investimento público.

A recente experiência brasileira, como outras pelo mundo, mostra que a austeridade e o ajuste fiscal são necessários, mas precisam ser adotados sem radicalismos. As sociedades, principalmente nos países emergentes, não suportam por muito tempo o impacto recessivo da busca desesperada do equilíbrio fiscal. Milei parece não acreditar nisso e diz não haver espaço para gradualismos. Seus discursos de campanha e posse espalharam um verdadeiro terrorismo fiscal, preocupado apenas com quantidade do gasto, sem dar atenção à qualidade. Los hermanos vão precisar de muita sorte.

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