domingo, 7 de janeiro de 2024

Elio Gaspari - A 'casta' de Pindorama

O Globo

Não se pode prever o que acontecerá com a presidência de Javier Milei na Argentina e, pelo andar da carruagem, não será coisa boa. Mesmo assim, seu cavalo de batalha —o combate à "casta"— arrisca aparecer na política brasileira.

A casta de Pindorama reúne empresários que articulam incentivos, juízes que acumulam penduricalhos, congressistas que industrializam emendas orçamentárias e maganos que empregam parentes. Tudo dentro de uma legalidade manipulada pela casta.

Numa só semana deste ano, a casta nacional produziu as seguintes pérolas:

O governador de Santa Catarina, Jorginho Mello, nomeou o próprio filho para a chefia de sua Casa Civil, até que a Justiça suspendesse o ato.

Um mês antes de se aposentar, a juíza Maria Izabel Pena Pieranti, do Tribunal de Justiça do Rio, recebeu R$ 1,1 milhão. Esse dinheiro era-lhe devido por férias não gozadas e também por férias vendidas. A juíza Pieranti passou olímpica pela magistratura. Ela apenas exerceu seu direito.

Os magistrados têm direito a 60 dias de férias por ano. Folgam um mês durante o recesso e "vendem" a outra metade. Esse penduricalho custa pelo menos R$ 6,5 bilhões anuais à Viúva, ervanário equivalente a um terço dos R$ 19 bilhões do incentivo dado à indústria automotiva.

Soube-se na quinta-feira que em dezembro passado os titulares do Tribunal de Contas atropelaram um parecer da área técnica e autorizaram um penduricalho para magistrados que acumulam funções. O mimo representa um aumento de cerca de 30% dos salários dos atendidos. (Concebido para juízes, ele se estende aos titulares do Tribunal de Contas.)

Thales Ramalho, um marquês da República

O jornalista Cícero Belmar publicou o livro "Thales Ramalho, Cem Anos - Política, Diálogo e Moderação". Morto em 2004, Thales foi um marquês do Império vivendo uma ditadura na República.

Hoje, quando se acompanham as figuras de Tancredo Neves e Ulysses Guimarães, mal se nota que, por perto, sempre estava a figura de Thales. Com Ulysses, ele costurou o vigor do MDB, um partido que em 1970 estava ameaçado de extinção e, quatro anos depois, elegeu 16 dos 22 senadores.

Com Tancredo, ele costurou a frente que enterrou a ditadura, elegendo indiretamente o primeiro presidente civil. Foi coautor da única conciliação da história brasileira saída da oposição.

Thales sofreu um acidente vascular cerebral e um acidente de carro. Como Bernardo Pereira de Vasconcelos no Império, movia-se numa cadeira de rodas. Era um moderado numa oposição naturalmente povoada por alguns radicais. (Alguns deles negavam-lhe o cumprimento.) Tinha amigos do outro lado da cerca, como o marechal Cordeiro de Farias, um patriarca das conspirações militares, e o senador Petrônio Portella (outro marquês), presidente do partido do governo. Era capaz de prever resultados de votações na rua e no Congresso. Homem simples, escondia cultura e refinamento.

Belmar rememora o encontro que Thales e Ulysses tiveram com o general Golbery do Couto e Silva em março de 1975. O endereço do local foi passado numa caixa de fósforos e a sala do apartamento estava com as cortinas fechadas. Nessa conversa, o general expôs-lhes o projeto do governo: acabar com o AI-5, com o bipartidarismo e ir para uma anistia. Os três guardaram o segredo do encontro por cinco anos, até que Thales revelou-o parcialmente.

Belmar pesquisou milhares de documentos, inclusive papéis do Serviço Nacional de Informações, ouviu familiares e contemporâneos. Foi ajudado por Helena Ramalho, a segunda mulher de Thales, anjo que o acompanhou por décadas.

No início do livro, vai contado o casamento de Ana Clara, filha de Thales, no dia 1º de março de 1985, na igreja de Nossa Senhora dos Prazeres dos Montes Guararapes, no Recife. Foi a primeira e última celebração da Nova República de Tancredo, com todo mundo lá, inclusive ele.

O pátio fronteiro da igreja é de terra batida. Naquela noite, estava todo coberto por folhas de canela.

A vaidade de Haddad

Entrevista do ministro da Fazendo custou-lhe novas pedradas vindas do PT

A entrevista do ministro Fernando Haddad ao repórter Alvaro Gribel custou-lhe novas pedradas vindas do PT, sobretudo por ter tratado da sucessão presidencial.

Ele foi sincero, mas mostrou uma ponta de ressentimento, associada a uma audaciosa vaidade.

Primeiro, ele expôs o justo ressentimento:

"Nos cards de Natal, o que aparece é assim: ‘A inflação caiu, o emprego subiu. Viva Lula!’ O meu nome não aparece."

Depois, vangloriou-se:

"Eu fui criticado no MEC, mas virei o melhor ministro da Educação da história do país, depois que deixei o MEC. Melhor prefeito da história de São Paulo, depois que deixei a prefeitura. Tomara que aconteça a mesma coisa agora."

Tomara que não aconteça, porque, noves fora ele mesmo, são poucos os que acham que foi um bom ministro da Educação. Quanto ao seu desempenho na Prefeitura de São Paulo, disputou a reeleição em 2016 e viu-se dispensado no primeiro turno.

Eremildo, o idiota

Eremildo é um idiota e desconfia que o governo está agindo em relação ao carros elétricos com a mesma teimosia que, no século passado, fechou o mercado nacional de computadores.

Elevaram-se as alíquotas de importação para carros elétricos e jogaram-se R$ 19 bilhões num programa de incentivo ao setor automotivo.

As montadoras são ajudadas pela Viúva há 70 anos. Quando ela apadrinhou essa indústria, a China produzia bicicletas. Na semana passada a BYD chinesa superou a Tesla na produção de carros elétricos.

A regressão de Tarcísio

A política transformou Lula, um metalúrgico com o primário completo e um curso de torneiro mecânico do Senai, no único brasileiro eleito três vezes para a Presidência da República.

Noutra ponta das virtudes curriculares, Jair Bolsonaro, já eleito, recebeu numa manhã de dezembro de 2018 o ex-oficial Tarcísio de Freitas. Nunca o havia visto e o encontro foi sugerido por um coronel. Tarcísio tinha sido um dos melhores alunos do Instituto Militar de Engenharia e comandara uma faxina do governo de Dilma Rousseff na burocracia dos transportes.

Terminada a conversa, Bolsonaro pediu-lhe que voltasse à tarde. Ele voltou e foi convidado para o Ministério da Infraestrutura. Simples assim.

Passou algum tempo e Bolsonaro sugeriu a Tarcísio o que parecia ser uma maluquice: ele deveria disputar o Governo de São Paulo. Elegeu-se.

Como a política transforma as pessoas, o aluno brilhante do IME meteu-se em dois episódios capazes de enrubescer até a turma da limpeza do Instituto.

Defendendo uma batatada de seu secretário de Educação, disse que o governo ofereceria livros didáticos em versões eletrônicas e os estudantes que não tivessem tablets ou computadores poderiam imprimi-los. Só não informou onde.

Num novo acesso de terraplanismo, avisou que não vai comprar novas câmeras corporais para a PM e disse:

"Qual é a efetividade da câmera corporal na segurança do cidadão? Nenhuma."

Nesse progresso de regressão, Tarcísio arrisca condenar a aplicação da vacina contra a dengue em São Paulo.

 

2 comentários:

Daniel disse...

Muito bom! Vaidade e arrogância: Haddad e Tarcísio mostram o mesmo nos temas trazidos pelo colunista. Mas é necessário reconhecer um dos grandes acertos de Bolsonaro ao prestigiar o ex-militar Tarcísio, que mostrou-se capaz de corresponder às expectativas do ex-presidente.

ADEMAR AMANCIO disse...

Haddad é ótimo em tudo que faz.