domingo, 7 de janeiro de 2024

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Um dia para celebrar a democracia

O Globo

Ao enfrentar seu teste mais duro — a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023 —, as instituições resistiram

A primeira e mais evidente lição a extrair do fatídico 8 de Janeiro de 2023 é que a vigília pela democracia precisa ser permanente. Os riscos estão sempre à espreita, e não deve haver trégua ante a ameaça do golpismo. A segunda lição, corroborada pelos acontecimentos posteriores, é a constatação louvável de que, mesmo enfrentando seu teste mais duro nas quase quatro décadas desde o fim da ditadura militar, a democracia brasileira resistiu. É essencial entender por quê. Para evitar que o pior venha a acontecer de novo e celebrar a vitória da democracia, é preciso conhecer em detalhes o que deu errado — e o que deu certo.

Naquele dia, num dos episódios mais sombrios da História do Brasil, apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro invadiram e depredaram as sedes dos três Poderes em Brasília em atos de vandalismo sem precedentes. Num primeiro momento, poderia parecer apenas uma manifestação fora de controle em razão da negligência da polícia. Não era. Foi uma tentativa de golpe de Estado, planejada e articulada ao longo dos meses que seguiram a derrota de Bolsonaro para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Havia método no caos que tomou a capital da República uma semana depois da posse de Lula. Os golpistas foram convocados pelas redes sociais. Organizadas e financiadas por voluntariosos “patriotas”, caravanas afluíram a Brasília, depois de semanas de acampamento na frente de sedes militares por todo o país. Nos dias anteriores, houve bloqueios de estradas e até uma tentativa frustrada de atentado no aeroporto da capital federal.

As hordas não tiveram dificuldade para avançar na Praça dos Três Poderes e invadir as sedes do Supremo Tribunal Federal (STF), do Congresso e do Palácio do Planalto. Em vez de conter a multidão, muitos policiais confraternizavam com invasores e até facilitavam o assalto ao patrimônio público. Enquanto a República era depenada em Brasília, golpistas fechavam estradas e bloqueavam o acesso a refinarias de petróleo noutros estados. No dia seguinte, ainda houve ataque a 11 torres de transmissão de energia.

No momento mais crítico, o então secretário de Segurança do Distrito Federal, Anderson Torres, passeava por Miami. Em sua casa, a polícia depois encontrou a minuta de um decreto para instaurar um insólito “estado de defesa” no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e mudar o resultado das eleições. Torres disse que o documento não tinha valor jurídico e seria descartado.

Hoje não há dúvida de que as intenções dos golpistas eram as piores. Em entrevista ao GLOBO, o ministro Alexandre de Moraes, relator dos processos sobre os atos antidemocráticos no STF, revelou que havia planos prevendo não só sua prisão, mas até sua morte. “Eu deveria ser preso e enforcado na Praça dos Três Poderes”, afirmou.

Se o roteiro do golpe fracassou, foi porque Executivo, Legislativo e Judiciário agiram prontamente, de maneira firme e coordenada, para preservar as instituições e a democracia. Chefes dos três Poderes fizeram questão de mostrar união num momento crucial. A imprensa, cumprindo seu papel, manteve a população informada antes e durante os acontecimentos. As Forças Armadas, é preciso reconhecer, também deram sua contribuição para a manutenção da normalidade democrática quando sua cúpula, instada a tomar parte no golpe, recusou em peso envolver-se na trama. Os governadores também não se omitiram. No dia seguinte ao caos, depois do afastamento temporário do governador do Distrito Federal, Lula se reuniu com representantes dos demais estados, incluindo os governadores de oposição. Foi uma cena histórica. Diante dos riscos concretos, viu-se que não é fantasia afirmar que o Brasil tem instituições fortes e operantes. É fato.

O comportamento da classe política brasileira mereceu elogios mundo afora. A direita brasileira, com exceção dos extremistas, deu uma resposta mais robusta à crise do que a americana depois da invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021. “Todas as principais figuras da direita brasileira aceitaram o resultado na noite da eleição e foram muito rápidas e duras ao denunciar a violência cometida no 8 de Janeiro, (...) muito diferente do que os republicanos fizeram nos Estados Unidos”, afirmou ao GLOBO o cientista político Steven Levitsky, da Universidade Harvard.

Golpistas que participaram do quebra-quebra, financiadores, idealizadores, incentivadores e agentes que se omitiram no 8 de Janeiro estão sob investigação e julgamento nos termos da lei. É o que deve ser feito. Dos mais de 2.100 presos, 66 permanecem detidos. Até agora mais de 30 réus foram julgados e condenados a penas de até 17 anos por crimes como associação criminosa, dano qualificado, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, tentativa de golpe de Estado e deterioração de patrimônio tombado. Réus que não participaram de atos violentos foram autorizados a firmar acordos de não persecução penal, com penas mais brandas. O importante é que o julgamento e a punição dos golpistas se deem dentro da lei e dos ritos judiciais. Com amplo direito de defesa, sem revanchismo nem sentimento de vingança. A oposição tem criticado as prisões e as penas, mas Moraes rechaça as críticas. “A Justiça tem que ser igual para todos”, diz. “Se as penas máximas fossem aplicadas em todos os cinco crimes, pegariam mais de 50 anos, mas pegaram 17 (no máximo).”

Para além de punir os executores, é necessário aprofundar as investigações para chegar aos mandantes. Sobretudo, é essencial estabelecer que papel — se algum — tiveram o ex-presidente Jair Bolsonaro e outras autoridades na tentativa de golpe. Para Moraes, caso fique comprovada a participação de políticos, eles devem ser alijados da vida pública. “Quem não acredita na democracia não deve participar da vida política do país”, afirmou.

Felizmente, o país voltou à normalidade democrática. Lula cumpre o mandato para o qual foi eleito. O Congresso escolhido pelo povo faz seu trabalho. O Judiciário julga com independência. A imprensa exerce seu papel fundamental de informar e fiscalizar. Tudo isso só foi possível porque a sociedade, mesmo cindida nas urnas, rechaçou com firmeza a trama golpista que tentou encerrar o mais longevo período democrático da História do Brasil. A lamentar, nas comemorações previstas para amanhã, apenas a ausência de governadores da oposição, sob as mais diversas alegações. Nada deveria ser mais importante do que celebrar a vitória da democracia no 8 de Janeiro.

De volta ao padrão

Folha de S. Paulo

Reação a 8/1 mostra democracia forte; deve-se focar na agenda social e econômica

A baderna que engolfou a praça dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023, apesar de ter ocorrido já na gestão Luiz Inácio Lula da Silva (PT), seria mais bem situada analiticamente como o ato derradeiro do período Jair Bolsonaro (PL).

Naquele dia desbordou o jorro de ódios e insanidades que haviam sido acumulados pela ação e a omissão do presidente da República e seu séquito de aloprados ao longo de quatro anos. Foi o fim de um pavio que se apagou diante da solidez da arquitetura democrática.

As instituições negaram substrato para aventuras golpistas. Os arruaceiros que acreditaram estar subvertendo pelo vandalismo o resultado das urnas moviam-se sem o menor respaldo do oficialato militar ou de qualquer outra organização do Estado brasileiro.

O porre da depredação de palácios na capital federal logo deu lugar à ressaca das prisões dos delinquentes e à sua responsabilização judicial. A Procuradoria denunciou mais de 1.400 pessoas pelos crimes daquele domingo. Um ano depois, 30 já foram julgadas e condenadas pelo Supremo Tribunal Federal.

A corte age bem ao dar celeridade aos processos, o que favorece o efeito dissuasório das condenações, mas se excede no tamanho das penas aplicadas. Elas chegam a 17 anos de prisão para acusados que não exerceram papel de liderar nem de organizar as violações.

Há um ano ouviu-se o último ronco da besta acuada que inspirava o extremismo de direita. Sob Lula, o chefe do Executivo recobrou o padrão de conformidade com as regras do jogo constitucional.

Essa conduta, vale sublinhar, tem sido a regra, quebrada apenas na quadra da irresponsabilidade bolsonarista, em quase quatro décadas de Nova República. O governante erra e acerta, ganha e perde, sem promover razias contra quem se incumbe de limitar e fiscalizar o exercício do poder presidencial.

O bom vento da normalidade deveria refrescar também o STF, que mantém inconclusos inquéritos policiais anômalos, abertos e tocados pelo mesmo tribunal que julga, e às vezes se inclina para decisões que cerceiam a livre expressão.

Reformas legislativas para evitar a contaminação das corporações militares pela política partidária ainda necessitam ser votadas pelo Congresso Nacional. Também espera-se que o aparato de segurança dos edifícios federais em Brasília jamais permita a repetição da humilhação do 8 de janeiro.

No mais, o Brasil tem pressa para virar a página. Precisa concentrar as suas energias cívicas e institucionais nos temas de seu desenvolvimento econômico e social deficiente. É exasperante perder tempo com agendas velhas e fracassadas, que questionam o pavimento democrático da rodovia a seguir.

Areia movediça

Folha de S. Paulo

Alargar praias contra erosão é defensável, mas pode tornar-se trabalho de Sísifo

Salvo raras exceções, a população se beneficia com alterações da paisagem natural e apoia a construção de usinas de energia ou pontes e viadutos rodoviários.

Quando se trata de alargar praias com toneladas de areia, nem preservacionistas criticam tanto tais iniciativas —embora elas figurem entre os usos pouco sustentáveis de dinheiro público.

Levantamento da Folha detectou 24 megaprojetos para engordar praias, do Ceará a Santa Catarina, alguns já concluídos, outros em planejamento ou execução. Tudo somado desde 2018, está uma montanha de 24,5 milhões de m³ de sílica, o suficiente para encher 12 estádios do Maracanã.

Comparado com o volume total dos mares da Terra (1,3 bilhão de km³), e considerando que 1 km³ equivale a 1 bilhão de m³, a areia mobilizada nos empreendimentos balneários de fato não se qualifica nem como a proverbial gota no oceano. Já os recursos investidos, de R$ 1,8 bilhão, fazem diferença para os 21 municípios envolvidos.

Pode-se argumentar que o benefício em qualidade de vida compensa os custos, diluídos entre centenas de milhares de cidadãos. Ocorre que esse gênero de intervenção contém apenas temporariamente a contínua erosão marinha.

Mesmo com obras complementares de enrocamento, exige-se reposição de areia. Mais dinheiro público se esvai com as ondas e a maré. Isso sem mencionar os casos em que se acelera o processo erosivo, como o da praia de Ponta Negra, em Natal (RN), em que uma obra incompleta solapou a tentativa de proteger o calçadão.

O problema da erosão marinha é generalizado no litoral brasileiro, e o enfrentamento fica a cargo de prefeituras ou governos estaduais, que não orçam recursos necessários para manutenção. Tendo em vista que os danos só vão piorar com a elevação do nível do mar, a questão demanda coordenação em nível federal.

Uma estratégia nessa direção se esboça com o prometido acréscimo da erosão costeira no Plano Nacional de Mudança do Clima, ora em revisão pelo Planalto.

É um dos temas candentes no capítulo de adaptação para preparar a infraestrutura e o poder público para o aumento da temperatura e dos eventos extremos que ele acarreta, como ressacas portentosas.

Mais que apenas alargar praias, governantes necessitam prevenir a possibilidade de que algumas delas terminem riscadas do mapa.

A força e a fraqueza do Supremo

O Estado de S. Paulo

Apesar das corretas alterações regimentais de 2022, STF segue apegado à velha cultura, ignorando que o poder da Corte é inversamente proporcional ao poder individual de cada ministro

No fim de 2022, sob a presidência da ministra Rosa Weber, o Supremo Tribunal Federal (STF) aprovou duas alterações em seu Regimento Interno que, de forma prática, reduziam o poder individual dos ministros. Os pedidos de vista passaram a ter prazo de 90 dias para devolução. Após esse período, os autos ficariam automaticamente liberados para a análise dos demais ministros. A segunda mudança referia-se às decisões cautelares monocráticas, que deveriam ser submetidas imediatamente a referendo do Plenário ou da Turma, a depender da competência do caso.

As duas mudanças regimentais contribuíam para uma atuação mais colegiada da Corte constitucional. Não reduziam o poder do STF, apenas limitavam o poder individual de seus ministros. Explicitavam, assim, uma realidade institucional muitas vezes ignorada: quanto maior é o poder individual dentro de um tribunal, mais fraco é o poder do colegiado.

Se um ministro sozinho pode determinar quando devolverá os autos para a continuidade do julgamento, todos os restantes ficam à mercê da vontade desse ministro. O mesmo ocorre com as decisões monocráticas. Exemplo dessa distorção foi a liminar do ministro Luiz Fux suspendendo a instalação do juiz de garantias. A posição dele era rigorosamente minoritária dentro da Corte, mas, com a decisão liminar, ele conseguiu que sua posição prevalecesse sobre a dos demais por mais de três anos. Ou seja, um só integrante da Corte foi capaz de atrasar a eficácia da decisão da Corte, em uma situação de clara fragilidade do tribunal.

Cabe um alerta, no entanto. Apesar de corretas e necessárias, as alterações regimentais ainda não produziram os efeitos esperados. Há ainda ministros confundindo poder individual com poder do STF. Eles não entenderam o profundo sentido de defesa da Corte que as mudanças de final de 2022 vieram promover. É realmente peculiar: há um novo Regimento, mas a mentalidade de alguns ministros segue ainda apegada ao velho modo de atuar.

Essa resistência ao fortalecimento da colegialidade ficou explícita na reação do presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, e do decano da Corte, ministro Gilmar Mendes, à aprovação pelo Senado da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 8/2021, que limita decisões individuais dos tribunais contra atos legislativos. Os dois trataram a proposta legislativa como uma afronta ao Supremo, mas, na verdade, ela fortalece o tribunal, evitando situações como a da liminar de Luiz Fux no caso do juiz de garantias, em que a uma só pessoa impediu que a vontade da maioria do Plenário produzisse seus efeitos constitucionais. Reafirmando o que a Lei 9.868/99 já estabelece, a PEC 8/2021 não diminui em nada o poder do Supremo, que continuará podendo exercer, agora com mais plenitude e independência, o controle de constitucionalidade das leis.

Mas o ano de 2023 indicou não apenas a permanência no STF de uma cultura ultrapassada e incompatível com a realidade institucional de uma Corte constitucional. Ele explicitou que a prática segue muito similar ao que era antes. Há quem continue utilizando decisões monocráticas como forma de definir sozinho situações jurídicas complexas. Mais do que evitar eventuais danos irreparáveis – finalidade do poder geral de cautela –, o objetivo de algumas liminares de ministros do STF é estabelecer novos cenários que, por mais esdrúxulos que sejam, uma vez definidos, são de difícil reversão. Foi o que se viu com duas canetadas do ministro Dias Toffoli em casos antigos. Em setembro, ele anulou todas as provas obtidas por meio do acordo de leniência celebrado em 2016 pela Odebrecht no âmbito da Lava Jato. E, em dezembro, suspendeu a multa de R$ 10,3 bilhões do acordo de leniência do Grupo J&F, celebrado em 2017. Não há nenhum sentido em fazer isso monocraticamente, o que desgasta e desautoriza a Corte.

A força do STF está em sua colegialidade. Só assim poderá prover uma compreensão estável e fundamentada da Constituição, apta a orientar todo o sistema de Justiça. O resto é arbítrio.

Mais um pacote de incentivo às montadoras

O Estado de S. Paulo

Conceder benefícios para estimular a produção de automóveis definitivamente se transformou numa regra, adotada por diferentes governos há 70 anos; o pretexto agora é a descarbonização

N o apagar das luzes de 2023, o governo lançou mais um pacote de incentivos para montadoras de veículos. A título de promover a descarbonização, o Programa Mobilidade Verde e Inovação (Mover) vai oferecer um total de R$ 19,3 bilhões em incentivos fiscais até o fim de 2028.

Há uma condição adicional, no entanto, para usufruir do benefício. A indústria terá de produzir os veículos no Brasil. E, para bancar parte do benefício, o governo contará com a arrecadação oriunda do Imposto de Importação sobre carros elétricos e híbridos, que voltou a ser cobrado em 1.º de janeiro.

Quando foi anunciado, em novembro, o fim da isenção de veículos eletrificados foi elogiado por este jornal. Era um bom exemplo a explicar a regressividade da carga tributária brasileira. Afinal, sob o pretexto de reduzir as emissões, o deficitário Estado abria mão de comprar impostos para favorecer a compra de veículos para transporte individual por consumidores de alto poder aquisitivo.

Agora, o governo Lula da Silva deixa claro que a reversão da medida jamais teve como objetivo o reequilíbrio fiscal ou a correção de injustiças tributárias. A intenção, desde o início, era preparar terreno para editar, pela enésima vez, um plano para incentivar a indústria automotiva a investir no Brasil, como admitiu o vice-presidente Geraldo Alckmin, também ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços.

O Mover nasceu para substituir o Rota 2030, programa que estava em vigor desde 2018. O Rota 2030, por sua vez, surgiu no lugar do Inovar-Auto, que funcionou de 2013 a 2017. Antes deles, vieram medidas para reduzir o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), para retomar a produção do Fusca e o Proálcool, entre muitas outras nos últimos 70 anos.

Conceder benefícios fiscais para estimular a produção de automóveis não é, portanto, uma novidade, mas uma regra adotada e mantida por diferentes governos para atender a interesses muito caros às montadoras. O que mudou, ao longo desse tempo, foi o objetivo que, em tese, justificava a adoção de cada uma dessas medidas: industrializar o País, gerar empregos, aumentar os investimentos na cadeia de autopeças e fornecedores, reduzir emissões, regionalizar a produção e reduzir o preço dos veículos.

Os números do setor mostram que os resultados dessas propostas são, no mínimo, questionáveis. Algumas até funcionaram, mas tiveram efeitos efêmeros. Já o custo dessas políticas foi muito palpável: sempre na casa dos bilhões. Segundo um relatório do Tribunal de Contas da União (TCU), cada emprego criado pela Stellantis em sua unidade no Pernambuco custava R$ 34 mil por mês aos cofres públicos.

Seria esta a melhor forma de aplicar os recursos? Para o governo federal, não há dúvidas de que sim. Incluída na reforma tributária, a prorrogação do programa para favorecer os fabricantes de veículos do Norte, Nordeste e Centro-Oeste não era unanimidade nem mesmo entre as montadoras e criou um racha como poucas vezes se viu na história da Associação Nacional de Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea). Teve, no entanto, apoio explícito do Executivo.

Com o lançamento do mais recente regime automotivo, a paz voltou a reinar na entidade. Para a Anfavea, o País “mantém-se na vanguarda ao estabelecer regras que dão previsibilidade aos investimentos privados no País”. “Excelente notícia para toda a cadeia da indústria automobilística brasileira”, disse a entidade.

Chega a ser cansativo observar o governo insistir nas mesmas políticas de sempre na expectativa de obter resultados diferentes. Se os incentivos para montadoras, de fato, funcionassem, o Brasil certamente teria uma produtividade invejável, seria um dos maiores exportadores de veículos do mundo e produziria automóveis modernos e competitivos.

Uma vez que não é, e que as mais de 20 montadoras e suas 27 fábricas estão com alto nível de ociosidade, seria, no mínimo, recomendável investigar as razões que podem explicar esse problema. Mas para o governo – e não apenas para este governo em particular – nada disso importa.

O recado do Ibama

O Estado de S. Paulo

Servidores ambientais decretam greve e expõem relação esgarçada com governo de Lula da Silva

A paralisação de todos os serviços de campo anunciada pelos servidores do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) logo nos primeiros dias do ano estica a corda em relação ao tratamento dado pelo governo à atividade ambiental. De acordo com a carta dos funcionários à direção do órgão, estão suspensas fiscalizações em todos os biomas e em territórios indígenas, além de procedimentos de prevenção e combate a incêndios florestais. Procedimentos de licenciamento ambiental também ficam interrompidos com a greve.

A preocupação imediata que surge com o anúncio de suspensão total das práticas de campo – inclusive atendimentos a emergências ambientais – é sobre as consequências desastrosas que podem advir de um período livre de fiscalização ambiental. Num momento em que ainda são intensos os efeitos da crise climática sobre os principais biomas brasileiros, uma “carta branca” ao avanço de atividades irregulares, como desmatamentos, mineração clandestina e incêndios criminosos, mesmo que por tempo limitado, representa um alto risco.

Mas tão alarmante quanto os eventuais danos ambientais é a relação política esgarçada entre a categoria e o governo petista. Na carta, que já conta com mais de 1.700 assinaturas, os servidores do Ibama declaram que o movimento grevista é uma resposta “à falta de ação e suporte efetivo” do governo. Para uma categoria que se autoatribui o título de mais assediada e perseguida durante o governo de Jair Bolsonaro – uma gestão de fato marcada pelo abandono ambiental –, classificar como “deslealdade” o primeiro ano do terceiro mandato de Lula dá a medida da insatisfação.

Pois foi dessa forma que funcionários do Ibama e do ICMBio se referiram ao governo Lula, também em carta, em dezembro passado, durante a realização da COP-28, em Dubai. Ressaltaram as contradições da gestão petista e falaram em redução de expectativas entre promessas e discursos e a prática.

A greve, por certo, é por melhoria salarial e pela instituição de um plano de carreira. E passou das ameaças à prática depois de o governo ter autorizado reajustes salariais para servidores da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal, no fim de 2023. Mas os funcionários do Ibama reclamam também do descaso que imaginavam ter ficado no passado com o fim do governo Bolsonaro.

Não é o que tem sido constatado. O órgão incumbido de formular e pôr em prática políticas públicas de proteção ao meio ambiente continua sucateado e opera com um corpo técnico muito aquém do necessário para cobrir todo o território. São pouco mais de 2.800 agentes, menos da metade dos 6.200 que teve num passado recente.

De acordo com dados de dezembro do Sistema Global de Informação sobre Incêndios Florestais (GWIS, na sigla em inglês), 2023 registrou uma temporada recorde de incêndios florestais, com 80 milhões de hectares queimados. No Brasil, foram 27,5 milhões de hectares. Na questão ambiental, o governo precisa decidir rápido se passa da teoria à prática no fortalecimento à ação fiscal.

Democracia fortalecida

Correio Braziliense

Um ano depois da infâmia do 8 de janeiro, quando golpistas invadiram as sedes dos Três Poderes, o regime que preserva as liberdades e o direito ao contraditório está mais forte do nunca

A democracia brasileira tem muito a comemorar. Um ano depois da infâmia do 8 de janeiro, quando golpistas invadiram as sedes dos Três Poderes, o regime que preserva as liberdades e o direito ao contraditório está mais forte do nunca. Não fosse, porém, a reação rápida e firme do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, o Brasil poderia estar amargando uma autocracia, em que os civis estariam com seus direitos cerceados. A sociedade deve se pautar pelo dia da barbárie para não permitir que o país flerte novamente com o autoritarismo.

Apesar do fortalecimento da democracia e do compromisso inequívoco da maior parte da população com esse regime, há um longo caminho a ser percorrido para que o Brasil seja pacificado. Infelizmente, a divisão política inflamada pelas redes sociais e pela disseminação de fake news continua alimentando o ódio e semeando a discórdia. Há profundas feridas abertas por anos seguidos de ataques às instituições, aos Poderes constituídos, que precisam ser cicatrizadas. A cura passa pelo diálogo e pelo respeito à Constituição.

Não há dúvidas de que a regulação das redes sociais é um dos remédios a serem prescritos. O submundo digital se transformou numa ferramenta vital para que grupos que desprezam os sistemas democráticos usem a mentira para destruir a história e minar as bases dos pilares que sustentam o que se aprendeu chamar de civilidade. Trata-se de um movimento global, em que o Brasil é uma peça importante para a ação dos que repudiam as liberdades. Não por acaso, há, hoje, no mundo, um número maior de países com autocracias do que nações democráticas. É assustadora, por exemplo, a constatação de que metade dos jovens alemães não sabe exatamente o que foi o nazismo, fruto do desinteresse pelo fato, uma arma para os manipuladores.

Um ano após as atrocidades que ocorreram em Brasília, o país deve repudiar, com veemência, a tentativa de alguns segmentos da sociedade de minimizar os fatos. Os atos terroristas, que resultaram na destruição do coração da República e de parte importante do patrimônio histórico não foram coisas de maluco. As terríveis imagens guardadas na memória de todos escancaram que havia métodos e muito planejamento por trás das invasões ao Congresso Nacional, ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ao Palácio do Planalto.

A punição aos que atentaram contra a democracia não pode se restringir aos que praticaram o vandalismo, deve atingir, sobretudo, aqueles que financiaram e idealizaram os movimentos golpistas. Não pode haver complacência, independentemente da origem, do poder econômico ou da farda vestida pelos que conspiraram a favor do autoritarismo. As penas devem decorrer de julgamentos justos e com amplo direito de defesa, tudo o que desprezam os artífices da infâmia. Assim como foi fundamental para evitar a ruptura institucional, o Judiciário brasileiro deve mostrar isenção e responsabilidade nesse processo.

Há que se ressaltar a coerência dos chefes das Forças Armadas. A despeito da tentação imperando dentro dos quartéis, todos optaram pelo compromisso com a democracia. Tiveram a consciência de que não poderiam abraçar uma aventura, sob o risco de empurrarem o Brasil para o caos e para o isolamento no mundo. A reação internacional, repudiando a tentativa de golpe, explicitou que 1964 não se repetiria. A partir de agora, cabe às instituições redefinirem o papel dos militares, para que fantasias golpistas sejam extirpadas de vez.

Nesta segunda-feira, 8 de janeiro de 2024, quando as instituições reforçarão o importante compromisso com a democracia, é fundamental que os brasileiros repudiem todo e qualquer movimento autoritário, que despreze as liberdades e os direitos básicos dos cidadãos. Quase 40 anos pós o fim da ditadura, o Brasil deve concentrar todos os esforços para se tornar uma nação mais justa, com menos desigualdades sociais e mais oportunidades, em especial, para os mais pobres. É preciso reforçar que, nesse compromisso, previsto na atual Constituição, o 8 de janeiro de 2023 jamais se repetirá. E jamais será esquecido.

 

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