O Estado de S. Paulo
Uma conjuntura política mundial feia e sem paz de espírito finge sua cólera. Mas há um canto meio adormecido onde a política é melhor. Lá, escritor sem talento não engana
Ninguém nasceu sobre o mundo, somos locais.
Universal é a cultura. Para quem gosta de ler, boa recordação traz esperança.
Enquanto no Brasil pobres de renda fixa são humilhados por milionário holerite
de juiz e procurador, a América Latina sucumbe ao ilícito. Sobre Gaza, se amar
os palestinos fosse mais forte do que odiar Israel, o conflito sumiria. Uma
conjuntura política mundial feia e sem paz de espírito finge sua cólera. A
política elabora muito mal a sua raiva.
Mas há um canto meio adormecido onde a política é melhor. Lá, escritor sem talento não engana. Então, compartilho com os leitores opiniões de alguns escritores do século 20. São entrevistas feitas pela The Paris Review – revista de língua inglesa, fundada em Paris, com sede em Nova York – ao longo de vários anos.
Jorge Luis Borges, por exemplo, pensa que não
se deve julgar um escritor por suas ideias. Ele “deve ser julgado pelo prazer
que proporciona e que se tem com ele. Quanto às ideias, não é tão importante se
um escritor tem estas ou aquelas opiniões políticas, porque uma obra boa se
realiza apesar delas”. “Uns veem o mundo como museu de diamantes, outros,
coleção de esquisitices.” “Certa vez, um repórter me perguntou se a morte
daquele cujo nome não quero me lembrar influenciaria minha obra.” Borges, que
via em Perón o mal maior da Argentina, riu e disse: vivo, já o tinha morto.
Considerava o nacionalismo político um erro. “Porque se alguém gosta de uma
coisa em detrimento de outra, é porque não gosta dela realmente. Não se ama a
Inglaterra em detrimento da França.”
As opiniões de Amós Oz, escritor de Israel –
morava no deserto perto de Jerusalém –, são totalmente atuais. “Muita cor e
política local são mortais para o romance. As situações, o enredo, são
importantes como os personagens. Mas o leitor também existe e, para um escritor
como eu, de uma das partes mais conturbadas do mundo, tudo é interpretado
alegoricamente.” “É ilusório achar que existe uma ocupação militar suave e
desconfio da sinceridade da sensibilidade moderna de querer politizar tudo no
campo dos direitos civis. Usar a literatura como alegoria política retira seus
matizes e põe em relevo o dogmático. Se em romance meu mulher israelense ama um
árabe, desagrado aos dois lados.” “Se Moby Dick fosse escrito por Vargas Llosa,
as pessoas diriam que a baleia é um ditador sul-americano.”
W. H. Auden, poeta angloamericano, era alheio
à influência eletrônica. Não dava entrevista gravada pois, se algo dito valesse
a pena, o repórter se lembraria. E contava a história do escritor Truman
Capote, que, diante de um repórter cujo gravador emperrou no meio da entrevista
e sem conseguir consertá-lo, sugeriu que ele anotasse. “Não, vamos encerrar.
Nem perco tempo, depois que surgiu o gravador, não ouço o que diz o
entrevistado.” Antes do celular, havia a mesma antipatia pela máquina de
retrato: “Se você cruza na rua com alguém caído, nem tenta ajudar, quer é
fotografar”. Tinha também restrições ao sistema eleitoral. “Como todo político
é igual, nossos líderes deveriam ser eleitos por sorteio.” “As pessoas não
conhecem mais o significado das palavras e as artes nada podem fazer. A
história da Europa seria exatamente a mesma se Dante, Shakespeare,
Michelangelo, Mozart e Cia. nunca tivessem existido. A responsabilidade
política do escritor é não deixar as palavras perderem o sentido.”
Doris Lessing, família inglesa, nasceu na
Pérsia, cresceu na África e viveu em Londres. Em tempo de influenciadores, o
nada codificado, é bom ver quem ignora modas. As pessoas a faziam uma espécie
de guru, seja na política ou na metafísica. Ela reagia: “É, as pessoas estão
sempre à procura de gurus. É a coisa mais fácil do mundo virar um. É
apavorante. Há gente que diz ‘não dá para fazer omelete sem quebrar os ovos’,
para justificar a ideia de assassinar uma multidão. Ensinar a viver? Não dou
conselhos, sei que tudo nessa área é clichê”.
Primo Levi, químico e escritor italiano,
sobreviveu ao nazismo em Auschwitz e dava ao recato nas relações pessoais e
políticas a dimensão de uma relíquia. Sem alimentar hostilidade, ressentimento
ou ódio, sua obra é um retrato dos seus hormônios delicados. Dizia: “Jamais
fiquei irado mesmo sendo incapaz de perdoar. Não é uma virtude minha; é um
defeito. É o hábito de ter sempre uma segunda reação antes da primeira”. Sobre
o político, é certeiro: “É o descaso com as leis e os costumes que nunca
permitiu à Itália forjar uma classe política digna do nome. Nossos piores males
são as escolas e a política, onde nossos professores e líderes ensinam sem ter
aprendido. Quem abandona a cultura e se dedica à luta política a vida toda
precisa que sempre exista confronto. Meu sentimento em relação ao ativismo
político é ambíguo. Admiro as pessoas capazes de enfrentar qualquer situação.
Mas não aquelas que acham que política é guerra e que a guerra jamais acabou”.
Tantos outros traduziram em literatura o que
viram da política. Dos melhores fica uma lição para autoridades públicas: só se
deve buscar sua vantagem pessoal, por opiniões e atos, se a vantagem das
pessoas que representam alcança a mesma compreensão e sucesso que seus
representantes se concedem.
*Sociólogo
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