Ataques de Trump à aliança atlântica geram instabilidade
O Globo
Ao lançar diatribes contra a Otan, virtual
candidato republicano sabota principal pilar da paz global
Desde que se lançou na corrida para a eleição
presidencial deste ano, Donald Trump retomou
suas provocações contumazes. O último alvo foi a Organização do Tratado do
Atlântico Norte (Otan),
acordo militar entre Estados Unidos, Canadá e países europeus. Em comício de
campanha, ele relembrou a pergunta do líder de “um grande país” da Europa
quando era presidente: “Se não pagarmos e formos atacados pela Rússia, você nos
protegerá?”. Trump disse que respondeu: “Não, eu não os protegeria. Na verdade,
eu os encorajaria a fazer o que diabos quisessem”.
A declaração de Trump é lastimável por colocar em dúvida o artigo número 5 do tratado, segundo o qual um ataque a qualquer integrante da aliança deve ser encarado como ataque a todos. Isso significa que os países mais fortes se comprometem a defender os mais fracos quando agredidos. Esse poder de dissuasão tem evitado há décadas uma guerra entre países da Otan e a Rússia.
É verdade que o petardo de Trump contra a
aliança atlântica poderia não passar de mais uma bravata dele. Afinal, apesar
de todos os ataques, das inclinações isolacionistas e dos acenos explícitos de
Trump ao russo Vladimir Putin durante seu governo, a Otan resistiu incólume.
Com a agressão da Rússia à Ucrânia, até cresceu com a adesão de dois países
nórdicos antes neutros (Suécia e Finlândia). Mas há indícios de que, desta vez,
caso eleito, Trump terá mais poder para pôr em marcha seus desígnios. E de que,
por força da guerra em curso na Europa, eles venham a ser testados.
Em recente entrevista, o ministro da Defesa
da Dinamarca, Troels Lund Poulsen, constatou uma mudança nos cenários traçados
no continente. Para Poulsen, não se pode descartar a possibilidade de a Rússia,
que invadiu a Ucrânia justamente para evitar que ela entrasse na Otan, pôr à
prova a solidariedade atlântica nos próximos anos, algo que não era cogitado no
ano passado. “Está vindo à tona agora”, disse.
Trump encara a aliança atlântica como um
negócio. Em 2006, os países da Otan concordaram em gastar no mínimo 2% do PIB
em defesa. No primeiro ano da Presidência de Trump, apenas quatro dos 29
integrantes atingiam a meta. No último ano de governo, eram nove. Os gastos com
defesa de europeus e canadenses saíram de US$ 277 bilhões em 2017 para US$ 314
bilhões em 2020. Trump vê os países que não cumprem a meta como
“inadimplentes”. Mas, mesmo com a saída dele da Casa Branca, os europeus
continuaram a aumentar o gasto, que alcançou US$ 356 bilhões em 2023. A razão é
óbvia: a instabilidade gerada pela guerra na Ucrânia. A Polônia, com vasto
histórico de agressões russas, investiu 3,9% do PIB em defesa no ano passado.
Por décadas, a tendência isolacionista no
eleitorado americano era combatida por um esforço bipartidário. Se Trump
vencer, ficará mais difícil. Ele já tem agido para bloquear um novo pacote de
ajuda à Ucrânia no Congresso.
Os Estados Unidos detêm as armas mais
poderosas do mundo e gerações de soldados com experiência em combate. O apoio
europeu é um enorme ativo para dissuadir russos e chineses de ações militares.
Não é preciso criatividade para imaginar o risco para o planeta do afastamento
americano da Otan. Basta lembrar que ela tem mantido o mundo em estado de paz
relativa — com vários conflitos regionais, mas sem enfrentamento direto de
grandes potências — desde a Segunda Guerra.
Minas Gerais e Santa Catarina erram ao
dispensar carteira de vacinação
O Globo
Exigência para matrícula escolar é eficaz
para elevar cobertura vacinal e reduzir risco de contágio por doenças
Nos últimos anos, os índices de vacinação no
Brasil caíram. Em 2023, foi constatada ligeira melhora depois de sete anos de
queda. Das oito vacinas recomendadas até 1 ano de idade, só uma (contra
catapora) não avançou. Mas a boa notícia deve ser vista com cautela. De modo
geral, a cobertura se mantém abaixo da meta preconizada pelo Ministério da
Saúde e necessária para atingir o nível de imunidade coletiva que detém a
circulação dos causadores das doenças, em torno de 95% do público-alvo.
Níveis abaixo disso podem abrir espaço à
volta de moléstias já controladas. Um exemplo é o sarampo. Em 2016, o Brasil
recebeu o certificado de erradicação da doença. Dois anos depois, em meio à
cobertura insuficiente, ela ressurgiu no Norte e se espalhou. Com reforço na
imunização, a situação pôde ser novamente controlada, e o país aguarda nova
certificação.
Diante de tal quadro, são temerárias as
decisões dos governadores de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo),
e Santa
Catarina, Jorginho
Mello (PL), de dispensar a exigência de vacinação nas
matrículas escolares. Em vídeo, Zema afirmou que todo aluno, independentemente
de ter se vacinado, terá acesso às escolas. Mello também divulgou vídeo dizendo
que nenhuma criança ficará fora da escola por não ter tomado vacina contra
Covid-19 (incluída no calendário oficial neste ano).
Não demorou para que Mello fosse seguido
pelas prefeituras de diversos municípios catarinenses. Ao se manifestar sobre o
assunto, o Ministério Público de Santa Catarina disse que os decretos excluindo
a vacina da Covid-19 do calendário oficial são inconstitucionais. E lembrou que
o Supremo Tribunal Federal (STF) já dera parecer favorável à vacinação
obrigatória de crianças.
A vacinação infantil não pode ficar ao sabor
de inclinações políticas. O artigo 14 do Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA) afirma taxativamente: “É obrigatória a vacinação das crianças nos casos
recomendados pelas autoridades sanitárias”. Pesquisa do Ministério da Saúde
relacionou os obstáculos que contribuem para os índices baixos. As campanhas
antivacina são apenas um. Há problemas logísticos, como localização e horário
de funcionamento dos postos, falta de doses e a visão equivocada de que doenças
já controladas — como poliomielite — não trazem risco. É um engano perigoso,
pois elas só estão adormecidas devido à vacinação maciça.
Em situações de emergência, a demanda por
vacinas cresce. Na vacinação de rotina, porém, a procura infelizmente tem
ficado aquém do esperado, a ponto de vacinas que custaram caro irem para o
lixo. Elevar os índices de cobertura vacinal no país é tarefa de todos. As
escolas podem cumprir papel importante nesse esforço, não só pela capilaridade
e proximidade com o cidadão, mas também porque são espaços propícios para
educar e informar. Exigir a carteira de vacinação no ato da matrícula ou para
ter direito a programas sociais do governo é medida fundamental para a saúde
dos brasileiros.
Disputas de poder não podem paralisar agenda
econômica
Valor Econômico
Tudo indica que há caminho de concertação entre Lira e o Planalto
A semana passada terminou com certa distensão
na relação entre Executivo e Legislativo. O presidente Lula tenta um equilíbrio
frente às amarras que se colocou ao, antes de assumir o cargo, dar o apoio ao
deputado Arthur Lira (PP-AL) para se reeleger no comando da Câmara dos
Deputados, em troca da aprovação dos R$ 165 bilhões para a PEC da Transição.
Lira quer agora assegurar o beneplácito do governo a seu sucessor e, ao mesmo
tempo, manter seu comando estrito da distribuição de emendas parlamentares, que
avançam sobre as despesas discricionárias do Orçamento na mesma proporção em
que estas diminuem.
Lira tem feito um jogo de colaboração e
antagonismo com o Executivo. As principais medidas do governo contaram com sua
colaboração ou anuência, como o novo regime fiscal, a reforma tributária e as
mudanças no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). Desde que
recebeu as rédeas da Câmara de um governo que não queria fazer política, como o
de Jair Bolsonaro, o deputado alagoano organizou uma base dispersa entre
partidos do Centrão por meio das emendas bilionárias, cuja distribuição
comandou, mais em função da fidelidade do que das hierarquias partidárias.
Esses recursos são uma de suas principais ferramentas políticas e uma das bases
de seu poder.
O poder de Lira, porém, tem prazo de validade
e ele sabe disso. “Não sou um pato manco”, disse em seu discurso carregado de
advertências ao governo no início do ano legislativo. A imagem significa a
perda de cacife político de um líder em algum momento de seu mandato e sua
transformação em figura decorativa no que resta dele. Lira não pode mais se
candidatar, e o governo tem interesse em que a influência de Lira entre em um
arco declinante nos próximos meses.
Há vários componentes nocivos nesta disputa.
Um deles, que se tornou óbvio, é o domínio crescente da Câmara e do Senado
sobre o orçamento, por meio das emendas parlamentares, que se multiplicam. É
atribuição do Executivo apresentar o plano orçamentário, considerando
integradamente as necessidades nacionais. As emendas impositivas de bancadas e
individuais, depois as do relator e a recém-criada de comissões, não têm
compatibilidade com o planejamento orçamentário. São uma miríade de projetos de
acordo com interesses locais e, por isso, fonte de má alocação de recursos e
desvios.
Houve um equilíbrio político na distribuição
de poder configurada no Orçamento, agora modificado pela maior participação
parlamentar sobre as emendas. As emendas individuais e de bancada somam um
quinto dos gastos livres (R$ 44,6 bilhões), ante pouco mais de 4,65% há dez
anos. Essa proporção é também maior do que a de uma amostra de 29 países,
segundo levantamento de O Globo (4 de fevereiro). O Congresso, no exame do
orçamento em 2023, criou as emendas de comissão e atribuiu-lhes dotações de R$
5,6 bilhões. O presidente Lula vetou esses recursos ao sancionar o orçamento,
causando nova irritação a Lira.
O empoderamento orçamentário do Centrão
ampliou o déficit de transparência no uso de recursos públicos. As emendas PIX
- em que o dinheiro é enviado para prefeituras e Estados sem que haja qualquer
definição de projetos ou destinação específica de gastos - consumirão este ano
R$ 8 bilhões. O Legislativo tentou, em ano eleitoral, estabelecer até um
calendário obrigatório para empenho e liberação das verbas, independentemente
do fluxo de arrecadação da União, quando a Constituição estabelece que a
efetivação orçamentária é uma incumbência do Executivo.
Lira está contrariado não só porque o
presidente Lula cortou o dinheiro das emendas de comissão. Ele reclama dos
empecilhos supostamente criados pelo Ministério da Saúde para liberação das
emendas do orçamento secreto, julgado ilegal pelo Supremo Tribunal Federal, mas
objeto de acordo com o governo. Além disso, o governo parece ter começado a se
mover para influir na sucessão na Câmara, fazendo mesuras para potenciais
candidatos que não são os preferidos de Lira. O deputado alagoano mirou o
mensageiro, o ministro de Relações Institucionais, Alexandre Padilha, por
discordar de decisões que são na verdade do presidente Lula e do círculo
palaciano. O PSB, aliado do PT, deve retirar-se do bloco do PP, e Lira viu
nisso mais uma trama do Planalto para retirar-lhe poder.
No entanto, Lira parece ter feito um armistício com o presidente Lula em reunião na sexta. Lula colocará o ministro da Casa Civil, Rui Costa, como interlocutor. Volta-se então ao status quo anterior, em que houve atritos, mas prevaleceu a colaboração produtiva. No último ano de mandato, Lira sabe que também precisa do Executivo para exercer sua liderança, manter unido o Centrão e transmitir seu cargo a alguém de sua confiança. Independentemente da disputa de poder, Executivo e Legislativo deveriam assegurar a continuidade de uma agenda de interesse nacional. Está a caminho a regulamentação da crucial reforma tributária, surgiu a chance de reforma administrativa e a reforma do ensino ainda está sob exame da Câmara, por exemplo. A paralisia legislativa seria péssima para o país. Mas tudo indica que há um caminho de concertação.
Mundo se tornou um barril de pólvora
Folha de S. Paulo
Instabilidade geopolítica causa recorde em
gastos militares e, associada a populismo no Ocidente, recomenda cautela à
diplomacia do Brasil
Nunca se gastou tanto quanto em 2023 com
defesa no planeta, salvo em períodos de guerras mundiais. No ano passado, as despesas
militares somadas de 173 países atingiram US$ 2,2 trilhões, o
equivalente ao PIB brasileiro.
Esse montante, estimado pela organização
britânica Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, disparou e deixou de
emular o ritmo do crescimento econômico, como era o padrão, passando a refletir
nova corrida armamentista.
A guerra na Ucrânia, deflagrada pela invasão
russa em fevereiro de 2022, tornou-se um catalisador dessa militarização. O
efeito não se resume a Moscou e Kiev; abrange fortemente países europeus que
compõem a aliança ocidental da Otan, cujo dispêndio saltou 40% em apenas um
ano.
Os EUA, líderes no ranking do gasto militar
que consomem o mesmo que as 14 nações subsequentes, aceleraram despesas de olho
no recrudescimento da ameaça da Rússia e, paralelamente, na rivalidade
estratégica crescente com a China.
A polarização aguda entre Washington e Pequim
tem sido outra alavanca do armamentismo global, estimulando o dispêndio militar
dos dois gigantes e de outras nações na região indo-pacífica. Conflitos e
escaramuças locais, como no Oriente Médio, também impulsionam a corrida bélica.
Se países se armam até os dentes, é porque
percebem mais instabilidade geopolítica. Os vaticínios mais otimistas após a
implosão da União Soviética, de que a Rússia e a China se pacificariam pela
integração econômica em escala planetária, revelaram-se equivocados.
O barateamento dos artefatos de destruição —e
o financiamento de governos estrangeiros interessados em fustigar adversários
indiretamente— elevou a capacidade de causar estragos de grupos insurgentes e
terroristas.
A validade da teoria de que potências
nucleares teriam maior imunidade contra agressões estrangeiras está sendo
colocada à prova. O fanatismo religioso e o ultranacionalismo que embasam
plataformas de aniquilação do inimigo tampouco dão mostras de esmorecer.
Não bastassem as tribulações em nações que
jamais se distanciaram da autocracia, os regimes de tradição ocidental enfrentam
dentro de suas fronteiras uma onda populista que desafia
fundamentos como a separação e a limitação dos poderes institucionais.
O quadro é delicado o suficiente para
recomendar cautela à navegação diplomática de um país como o Brasil. Nesse
ambiente, a escolha de aliados e de causas no plano internacional pode
facilmente alimentar os adversários internos da democracia representativa.
Paliativo contra evasão
Folha de S. Paulo
Governo define ajuda a alunos no ensino médio, que ainda precisa de reforma
Com duas portarias do Ministério da Educação,
o governo começou a regulamentar o programa destinado a oferecer ajuda
financeira a alunos pobres do ensino médio. Dada a ainda elevada taxa de evasão
nessa etapa da vida escolar, no mais das vezes causada pela desigualdade
social, a iniciativa tem objetivos corretos.
Serão quatro tipos de incentivo: para
matrícula (R$ 200 por ano); para frequência (R$ 1.800, em nove parcelas
mensais); para realizar o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem, R$ 200); e para
a conclusão de cada série (R$ 1.000 anual).
Neste último caso, o valor é acumulado em
poupança e só será resgatado ao término dos estudos.
Poderão participar apenas alunos de escolas
públicas que cursem o ensino médio ou o programa Educação de Jovens e Adultos
(EJA), que tenham entre 14 e 24 anos de idade e façam parte de família inscrita
no cadastro da baixa renda —terão prioridade aquelas que recebam o Bolsa
Família.
Os números atestam a importância de tal
política pública.
Segundo o Censo Escolar, em 2022 a taxa de
evasão no ensino médio chegou a 6,5% —1,5 ponto percentual acima da verificada
no ano anterior. Pesquisa do IBGE de 2019 mostrou que 39,1% das pessoas entre
14 e 29 anos que não concluíram a educação básica deixaram a escola para
trabalhar.
A adesão ao ensino integral também é afetada
pela vulnerabilidade social. Em São Paulo, por exemplo, 50% das escolas do
estado seguem esse modelo, mas apenas
17% dos alunos estudam nelas. Aqueles que precisam trabalhar vão
para o ensino parcial ou abandonam a escola.
Também é baixo o interesse pelo Enem,
principal forma de ingresso no ensino superior. Em 2023, dos 4 milhões
de inscritos, só 2,7 milhões (68%) fizeram a prova.
Segundo o MEC, o gasto com o novo programa
será de R$ 7,1 bilhões ao ano, com previsão de 2,5 milhões de estudantes
beneficiados. Não se detalharam ainda os parâmetros que embasam as cifras.
Trata-se de política meritória que demandará execução criteriosa e avaliação de custos e eficácia. Em qualquer cenário, continua necessária a reforma do ensino médio.
Prioridade errada
O Estado de S. Paulo
Estudo mostra que temos transferência de
renda às avessas: o Brasil gasta muito com o ensino superior para a minoria
rica, enquanto oferta educação básica péssima para a maioria pobre
A educação pública brasileira costuma ser um
terreno fértil de erros e inversão de prioridades que geram atrasos e
desigualdades, impondo um horizonte sombrio para milhões de crianças e jovens.
O estudo divulgado recentemente pela Secretaria do Tesouro Nacional (Despesas
por Função do Governo Geral) reafirmou em números um desses equívocos. Mapeando
dados consolidados até 2022, constata-se que, no ensino superior, o Brasil
exibe gasto no padrão de países ricos, enquanto fica aquém em etapas da
educação básica como o ensino fundamental 2 e o ensino médio. Não difere muito
nas despesas com educação infantil e fundamental 1, mas no conjunto de despesas
gerais com a educação (4,49% do Produto Interno Bruto – PIB) o País fica abaixo
de vizinhos da América Latina e de economias avançadas.
É importante notar, de acordo com o estudo,
que o Brasil vinha ampliando sistematicamente o volume de despesas com educação
entre 2010 e 2019 – de R$ 397 bilhões para R$ 520 bilhões no período, ainda que
proporcionalmente em relação ao PIB tenha sido verificada uma certa
estabilidade entre 2011 e 2018. Entre 2019 e 2021, no entanto, iniciou-se um
período de redução e, nela, a educação básica foi especialmente atingida,
graças à pandemia de covid-19 e à retração que se verificou tanto nos governos
estaduais e municipais quanto em nível federal. O ano de 2022 inverteu a
trajetória decrescente.
Essa curva não inverte o essencial: em
matéria educacional, o Brasil tem um sistema de transferência de renda e
geração de oportunidade às avessas, distorção que já vem sendo apontada há
bastante tempo por especialistas. Enquanto a uma esmagadora maioria pobre se
oferta um péssimo ensino básico público, a minoria rica tem a seu dispor boas
universidades públicas e gratuitas. Existe padrão internacional nas escolas
privadas, não faltam magníficas exceções entre as escolas públicas da educação
básica e há trágicos exemplos de má qualidade entre universidades públicas, mas
o retrato geral é desabonador, completado e aprofundado pela defasagem do
ensino técnico e profissionalizante.
Isso significa estar na contramão do que
ensinam boas práticas apontadas pela literatura especializada. A lição
internacional indica dois pilares essenciais: prioridade para a educação básica
e a qualificação de professores. No abecedário dos erros do Brasil, falha-se em
ambos.
Em setembro do ano passado, o relatório
Education at a Glance, da Organização para Cooperação e Desenvolvimento
Econômico (OCDE), mostrou que desde 2010 o Brasil investe menos de um terço do
que os países ricos para cada aluno da educação básica pública: US$ 3.583 por
aluno/ano, enquanto a média entre as nações desenvolvidas é de US$ 10.949. Em
contrapartida, o Brasil investe no ensino superior público quase US$ 14.800 ao
ano por aluno, o mesmo valor da média da OCDE, além de ter um dos menores
porcentuais de estudantes matriculados na educação profissional, considerando
os 45 países analisados. Um ano antes, o Anuário Brasileiro da Educação Básica
já apontava tendências similares.
Esse pode ser um recado particularmente útil
para o presidente Lula da Silva. As primeiras gestões lulopetistas dedicaram
especial atenção à ampliação de vagas no ensino superior, tanto pela abertura
de novas universidades públicas federais quanto pelos incentivos às
universidades particulares por meio de mecanismos como o Prouni. Lula e o PT se
mostram garbosos até hoje ao falar dos números exuberantes das gestões
anteriores, entre novos campi universitários (181), novas universidades
federais (18) e os chamados institutos federais (422). Obras e prioridades que
jamais se converterão em mudança efetiva para a vida de crianças e adolescentes
diante de uma educação básica que fracassa em quantidade e qualidade, na
atração de recursos e na gestão.
Enquanto alunos de escolas privadas têm
desempenho similar ao dos norte-americanos, a esmagadora maioria que vem da
escola pública ingressa na vida profissional só com as frágeis ferramentas do
ensino básico. Tal descompasso não é uma imposição do destino, e sim o
resultado de más escolhas públicas.
Boas práticas anticorrupção
O Estado de S. Paulo
Dados comprovam o bom senso: para os sintomas
da corrupção, o melhor remédio é a pressão popular por mais Estado de Direito;
para a sua causa, o desenvolvimento socioeconômico
Sejam lá quais forem os questionamentos que
se possam fazer em relação à metodologia do Índice de Percepção da Corrupção
(IPC) da Transparência Internacional e sejam lá quais tenham sido os impactos e
usos políticos da última edição, que constatou um declínio da trajetória já
medíocre do Brasil, dois fatos permanecem: o IPC é o mais reputado indicador de
percepção da corrupção e a corrupção está entre as maiores preocupações dos
brasileiros. Segundo a pesquisa Atlas Intel publicada no início do mês, entre os
maiores problemas do País, a corrupção é o segundo mais citado (57%), só atrás
do crime organizado (59%), ambos bem acima do terceiro colocado: pobreza,
desemprego e desigualdade (19%). Desde novembro, as menções à corrupção
aumentaram sete pontos porcentuais.
Assim, antes de matar o mensageiro, as
autoridades deveriam utilizar indicadores como o IPC e outros para diagnosticar
as causas da corrupção e buscar a sua cura.
Comparando-se os países do topo e da base, há
uma evidente correlação entre corrupção e desenvolvimento socioeconômico. A
corrupção tende a ser menor em países mais ricos, em economias baseadas no
conhecimento e em sociedades mais tolerantes, plurais e democráticas. As
evidências comprovam o que é intuitivo: o meio mais eficaz de combate à
corrupção é desenvolver o capital humano para alavancar o crescimento econômico
e fortalecer a democracia.
Mas, se esses fatores são determinantes, não
são definitivos. Há países em condições similares às do Brasil, como Chile ou
Uruguai, muito menos corruptos há décadas. E há outros em condições piores que
evoluíram mais vigorosamente. Exemplos clássicos de progresso rápido e
sustentável incluem Hong Kong, Cingapura, Libéria, Georgia, Botswana, Estônia e
Coreia do Sul.
O caso da Coreia do Sul é particularmente
elucidativo. Segundo o IPC, no final da década de 90, o país tinha índices
similares aos do Brasil (na faixa dos 30-40 pontos, de 0 a 100). Hoje tem
índices similares aos do Chile (60-70 pontos). A evolução é corroborada por
outros levantamentos.
Embora a Coreia seja considerada hoje um país
desenvolvido, a transição foi relativamente recente. Como o Brasil, ela cresceu
rapidamente nos anos 60 e 70 sob ações governamentais de um Estado autoritário
e se consolidou como uma democracia nos anos 80. E, como no Brasil, a sociedade
coreana era, e em certa medida ainda é, dividida em redes de confiança
agrupadas em torno de indivíduos poderosos que competem por influência, poder,
empregos e recursos públicos – em outras palavras, o capitalismo de compadrio.
Apesar de reformas ambiciosas para conter o
clientelismo e promover a transparência e a responsabilização na governança
corporativa, a corrupção política e empresarial ainda se faz sentir. No
entanto, outras reformas se mostraram bastante bem-sucedidas.
A prioridade em um processo meritocrático de
recrutamento e promoção dos servidores é consensualmente considerada um fator
decisivo na redução da corrupção coreana, especialmente na administração
pública. A transparência e a abertura do governo foram fortalecidas por uma
série de leis, especialmente rigorosas em relação à transparência do orçamento
e das compras e procedimentos governamentais. Essa dinâmica foi turbinada por
massivos investimentos em plataformas digitais facilmente acessíveis ao público.
A Coreia tem hoje um dos maiores sistemas de licitação digital do mundo, o que
ajuda a fiscalizar e excluir empresas corruptas.
Mas na Coreia, como em outros casos, a
precondição do sucesso foi algum nível de liderança e vontade política de
enfrentar a corrupção. A pressão da sociedade civil, por sua vez, foi decisiva
para estimular essa vontade política. A comparação internacional mostra que, no
combate aos sintomas da corrupção, um Judiciário e um funcionalismo autônomos,
eficientes e meritocráticos, assim como a transparência e a participação
popular na definição de políticas e gastos públicos, são os melhores remédios.
Quanto à causa da corrupção, a melhor cura é o crescimento socioeconômico.
O festim dos títulos incentivados
O Estado de S. Paulo
Fim do uso indevido desses papéis prova que
solução era fácil e poderia ter vindo antes
Fazer uso de brechas legais faz parte do
jogo. Não é crime encontrar meios de caminhar no limite da lei sem, no entanto,
infringi-la. Cabe ao formulador evitar que a estrutura legal apresente fissuras
que permitam esses desvios. Dito isso, pode ser considerado previsível e até
natural o movimento constatado nos últimos anos no mercado de títulos de renda
fixa. Numa ação crescente, incentivos criados para financiar o setor
imobiliário e o agronegócio acabaram sendo usados por diversos outros
segmentos, num completo desvirtuamento da ideia original.
Mas, ora, seria muita ingenuidade não
reconhecer que parte considerável dos ganhos dos investimentos financeiros
consiste justamente na capacidade de achar um caminho legal de potencializar os
rendimentos. Para aumentar a participação privada no financiamento a projetos
considerados prioritários, o governo concedeu isenção de Imposto de Renda a
investidores em títulos específicos. Vieram LCI, LCA, CRI, CRA e LIG. Todos os
“is” e “as” das siglas são referentes a imobiliário e agrícola, os setores que
se pretendia alcançar.
Não demorou para que a engenharia comum no
mercado encontrasse um meio de vincular a emissão de debêntures a esses
títulos. O que demorou foi a reação do governo. Foram, ao menos, oito anos de
crescente uso da brecha, já um enorme buraco, até que o Conselho Monetário
Nacional (CMN) enfim instituísse, na primeira reunião deste ano, um novo
regramento para evitar o uso indiscriminado dos títulos.
O volume da movimentação financeira não deixa
dúvidas sobre o custo dessa demora. Somente no ano passado, 55% das emissões
lastreadas em títulos agrícolas ou imobiliários não passariam pelo novo crivo
do CMN, o que corresponde a R$ 46 bilhões, como informou a Coluna do Broadcast,
envolvendo uma gama de segmentos tão distintos quanto varejo e saúde. Uma
distorção que, por certo, há muito já havia sido detectada pela autoridade
monetária e pela equipe econômica. Prova disso foram as inúmeras tentativas de
retirar o incentivo tributário.
Seria uma visão simplista demais rotular de
vilões os segmentos que se beneficiaram dessas emissões para se capitalizar. O
que ocorreu foi um caso clássico de aproveitamento de uma má formulação. E a
facilidade da solução encontrada faz questionar qual a razão para a demora em
aplicá-la, se nem mesmo houve necessidade de tramitação de nova lei no
Congresso. Uma mera decisão do CMN restabeleceu a normalidade ao incentivo.
Da mesma forma como a atuação do órgão superior do sistema financeiro pôs fim, ainda que tardiamente, ao festim do mercado de renda fixa, espera-se que atitudes reguladoras desse tipo passem a ser rotineiras – e não apenas no mercado financeiro. Afinal, mecanismos de incentivo são necessários e, em alguns casos, imprescindíveis para sustentar o crescimento econômico, a qualidade de renda e a redução da desigualdade no País. Mas também são necessários e imprescindíveis o monitoramento e a fiscalização para garantir que sua finalidade não seja comprometida.
Enfim, o ano começa no país
Correio Braziliense
O que se espera é que em lugar de atritos
políticos ocorram entendimentos em prol de toda a sociedade
Para os foliões que pularam carnaval nos
últimos dias, movimentando o corpo e a economia de milhares de cidades Brasil
afora, a Quarta-Feira de Cinzas marca o fim da fantasia e o reencontro com a
realidade. Para o Brasil é o momento de retomada de discussões importantes no
Judiciário e no Legislativo, que deram início aos seus trabalhos de 2024 na
semana passada. Como esse começo foi atropelado pelo carnaval, a engrenagem
efetiva será a partir de agora.
E o que se espera é que em lugar de atritos
políticos ocorram entendimentos em prol de toda a sociedade. Ainda que a
reoneração da folha de pagamento de 17 setores e os vetos do presidente Lula ao
Orçamento, com corte de R$ 5,6 bilhões de emendas parlamentares, possam
significar impasse, é preciso que se busque o consenso e que Executivo e
Legislativo cheguem a bom termo para destravar a pauta de votações no Congresso
em ano encurtado pelas eleições municipais.
No Congresso é preciso que se votem os
projetos que vão regulamentar a reforma tributária, para que ela seja
efetivamente concluída e gere os benefícios esperados, e também as propostas
para efetivar o Programa Mobilidade Verde e Inovação (Mover), que, embora
receba críticas, é a peça que está motivando montadoras a confirmarem
investimentos de R$ 41,7 bilhões em novos produtos e descarbonização no país.
Câmara e Senado devem avaliar ainda a reforma do Código Civil, a regulação da
inteligência artificial (IA), as mudanças eleitorais, o projeto para regulação
do mercado de carbono e do mercado de hidrogênio verde, sem falar no projeto de
combate às fake news.
Do lado do Executivo, o que se espera é que
efetivamente sejam tomadas medidas para que os projetos de investimentos
previstos e anunciados com pompa e aos quatro ventos pelo presidente Luiz
Inácio Lula da Silva (PT) comecem a tomar forma. São esses recursos em projetos
de infraestrutura, saúde, educação e segurança que podem dinamizar a economia
neste ano, para que não se confirmem as projeções de um crescimento cerca de
50% menor do que a expansão de 2023, que será conhecida em 1º de março.
Com o setor agrícola perdendo tração por
causa das mudanças climáticas e do El niño e pela redução dos preços das
commodities - soja e milho tiveram queda de 50% - em 2023 e tendência de
estabilização agora, será preciso que o consumo das famílias dê suporte para a
expansão dos serviços e da indústria para que o Produto Interno Bruto (PIB)
possa mais uma vez surpreender e crescer além das previsões de janeiro. Hoje,
os economistas e analistas ouvidos pelo Banco Central projetam crescimento de
1,6% do PIB, o Banco Mundial espera alta de 1,5% e o Fundo Monetário
Internacional, 1,7%.
Esse crescimento é baixo para o potencial da economia brasileira, que deu uma pequena mostra do que apenas o setor de eventos e audiovisual pode gerar de impacto em termos de receitas e abertura de emprego. A estimativa é de que a folia de Momo tenha alavancado negócios da ordem de R$ 9 bilhões, com dezenas de milhares de brasileiros trabalhando na folia. Que esses recursos, que renderam impostos, sejam revertidos na dinamização econômica dos locais onde foram alocados. É preciso agir para acelerar o crescimento econômico e a geração de empregos, agora que o ano está começando.
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