O Estado de S. Paulo
Não será apenas olhando as grandes categorias de gasto ou o número do déficit que o País alcançará a consistência nas contas públicas
A questão fiscal vem dominando o debate
econômico nacional há décadas. O fiscal não era objeto de atenção até o final
dos anos 70, mas quando fortes questionamentos emergiram na crise da dívida
externa do início dos anos 80, o País passou a olhar para o assunto. O suporte
em moeda forte requisitado ao Fundo Monetário Internacional (FMI) foi, por
norma do próprio fundo, embasado num plano de ajuste do balanço de pagamentos
que teve a política fiscal como pilar.
A abordagem teórica do FMI baseava-se no
ajuste monetário do balanço de pagamentos, em que o desajuste das contas
externas derivaria de uma absorção excessiva dos agentes internos. Como o
Estado é o agente de maior expressão, avaliar as contas públicas para
identificar se o governo estaria gerando demanda excessiva seria crucial para
identificar a origem do desequilíbrio.
Nasceu aí a mensuração pelo conceito de Necessidades de Financiamento do Setor Público Não Financeiro (NFSP), que deu base teórica à construção do que hoje denominamos déficit ou superávit primário do setor público. Foi um esforço importante. Vale notar que o mercado financeiro e os analistas econômicos passaram a tomar os valores de déficit/superávit como elementos cruciais de análise de conjuntura e macroeconômica.
A recente publicação do Relatório de
Projeções Fiscais, pela Secretaria do Tesouro Nacional, é um passo desta
construção de um arcabouço analítico mais sólido para a avaliação dos riscos
fiscais, gerando uma visão de médio prazo.
Um aspecto deste relatório foi
particularmente notado pela imprensa e pelos analistas das contas públicas.
Trata-se da trajetória das despesas obrigatórias ante as despesas
discricionárias.
As despesas obrigatórias são aquelas já
programadas em atenção ao arcabouço jurídico e tidas como inescapáveis: folha
salarial, aposentadorias e pensões, Bolsa Família, Benefício de Prestação
Continuada (BPC-Loas) e sentenças judiciais. Já as despesas discricionárias se
dividem em dois grupos: 1) as rígidas, que são os gastos em saúde, educação e
emendas parlamentares; e 2) as demais despesas discricionárias. Vale notar que
as primeiras são rígidas porque vinculadas ao comportamento da arrecadação.
O Relatório do Tesouro Nacional mostra que a
grande rigidez das despesas obrigatórias, conjugada à vinculação de parte das
despesas discricionárias à evolução da receita, enuncia a contínua redução do
espaço fiscal para demais despesas discricionárias. A projeção apresentada
aponta uma insólita redução dessas demais despesas discricionárias a um valor
negativo de R$ 12 bilhões, em 2033.
O caminho da discussão já se volta para o
questionamento das vinculações da educação e da saúde, velha obsessão dos
segmentos conservadores. Se as despesas obrigatórias são incompressíveis e é
necessário preservar minimamente a despesa discricionária não rígida, a lógica
aponta para a redução das despesas discricionárias rígidas (educação, saúde e
emendas parlamentares). Como se a mera desvinculação reduzisse as demandas da
população. Essa atitude espelha a falta de uma análise mais profunda dos
elementos que governam a evolução das contas públicas. Olhar um valor como o
déficit primário esconde a dinâmica das contas e da própria economia. Mais do
que isso, esconde a estrutura governamental e seu movimento.
Decerto, não será apenas olhando as grandes
categorias de gasto ou o número do déficit que o País alcançará a consistência
nas contas públicas. É necessário fazer a gestão das diversas peças da
estrutura pública.
Só para ficar nos casos mais escandalosos. É
motivo de alerta um valor de precatórios que é, consistentemente, 0,8% do
Produto Interno Bruto (PIB), tendo chegado a 1,4% do PIB e gerado uma
expectativa de 2,3% do PIB para 2027. Algo de muito errado deve ter acontecido
e estar acontecendo para que o descalabro seja tão grande.
A política de pessoal também parece eivada de
questões. Individualmente, é o maior gasto governamental. Mas os gastos não
parecem ser compatíveis com a efetividade no trabalho envolvido. Logicamente, a
questão é um tabu, por causa das relações políticas envolvidas, mas não há como
valorizar a ação pública sem reformatar a política de pessoal.
Por fim, mas certamente não menos importante,
as emendas parlamentares. Não que senadores e deputados federais não consigam
expressar as carências em suas bases políticas, eles o sabem melhor que
qualquer um. Mas a escalada dos valores entregues à discricionariedade se deu
em decorrência da debilidade do Executivo federal em sua relação com o
Congresso Nacional. Não é crível que haja uma boa coordenação entre políticas
públicas setoriais e a escolha pelos parlamentares. O Orçamento público
brasileiro não pode conviver com um descalabro deste gênero.
Das primeiras medidas de déficit produzidas
pelo FMI, nos anos 80, até hoje, ainda nos defrontamos com a prevalência do
resultado primário sobre a análise da estrutura da receita e do gasto. Mas
consistência macroeconômica não é um número. Ao contrário, é solidez
institucional da máquina pública.
*Economista
Nenhum comentário:
Postar um comentário