sábado, 27 de dezembro de 2025

E o robô vem aí para trabalhar. Por Ivan Alves Filho

O termo robô vem do idioma tcheco e significa trabalho ou, para ser mais preciso, trabalho forçado —robota. A ideia desse trabalho compulsório feito na realidade pelas máquinas foi desenvolvida em uma peça de teatro escrita há mais de um século, de autoria de Karel Capek. Curiosamente, a Tchecoslováquia então socialista seria o primeiro país a organizar um simpósio sobre a automação, em 1965. Nele ficou concertado que a base técnica da sociedade sem classes seria gestada pela automação. Afinal, ainda não se inventou mais-valia em cima de robôs, por exemplo. Com a automação, a exploração do trabalho humano torna-se obsoleta. A sociedade sem classes agradece. 

Mas, e o que fazer com as pessoas, que ficarão cada vez mais sem trabalho, ou pelo menos aquele trabalho diretamente produtivo? Serão (ou terão...) que ser recicladas profissionalmente. É um mundo inteiramente novo esse que vem por aí. E têm pessoas até no campo das ideias —  vá lá —  progressistas, que se assustam com isso. Elas me lembram aqueles fazendeiros do Império que defendiam a escravidão frente à entrada das máquinas no processo de produção promovido pela Revolução Industrial. Quem assim procede se transformou em um reacionário, no sentido marxista do termo, isto é, em alguém que reage ao avanço das forças produtivas. Podemos nos interrogar se essas pessoas entenderam os objetivos de Karl Marx e Friedrich Engels, quando apontavam para a formação de uma sociedade sem classes sociais antagônicas. Mais: será que essas pessoas já colocaram alguma vez os pés em uma fábrica, onde o trabalhador é um escravo moderno do capital e das máquinas? Duvido muito.  

Vale dizer, são problemas novos que a vida dispõe diante de nós. O fato é que já existe uma defasagem entre a alta tecnologia de hoje, de um lado, e a demografia ou o estoque demográfico de ontem, de outro. Hoje, a automação veio para ficar e suas consequências para a evolução das sociedades humanas ainda são imprevisíveis. Desde o ano de 2021, por exemplo, robôs coletam frutas em fazendas dos Estados Unidos e de Portugal, a uma velocidade espantosa, dispensando trabalho humano, e sem estragar nenhuma dessas frutas. E, em 2025, a China já produziu mais da metade das unidades de robôs humanoides fabricados em todo o mundo, isto é, em torno de 20 mil peças, segundo apurou a revista Exame. O processo de robotização avança e muito e isso no país mais populoso do mundo, juntamente com a Índia. Quem me repassou esse último dado foi o ator e diretor de teatro Délcio Marinho, descendente por sinal de Astrojildo Pereira, um homem sempre atento às transformações que se operam na base material de seu tempo. Tanto que entendeu que o anarquismo, ao qual se filiava, era resultado de uma indústria ainda artesanal, e que o bolchevismo, ao qual acabou aderindo, era expressão do chão da fábrica, da indústria pesada, de uma nova era, portanto.

(Em tempo: esse pessoal de teatro continua na vanguarda. Ponto para o meu querido amigo Délcio Marinho.)

Acontece que a população mundial se aproxima dos 9 bilhões e será preciso reinventar o trabalho. Aquele trabalho diretamente produtivo e gerador de mais-valia perde espaço a olhos vistos, ou seja, o trabalho do chão da fábrica, justamente. No futuro, eu arriscaria a dizer que as mercadorias produzidas cada vez mais pelas máquinas (ou o chamado trabalho morto ou, ainda, capital constante) terão que ser doadas, uma vez que o trabalho assalariado, que é o que produz capital, sairá praticamente de cena. De um lado, temos um robô que produz, mas não compra; de outro, o operário expulso da atividade produtiva, mas que não disporá de recursos para comprar o que quer que seja, uma vez que não perceberá um salário. Se antes a Revolução Industrial inaugurada na Inglaterra transferiu uma parte da capacidade muscular do homem para as máquinas, hoje é uma parte da sua capacidade cognitiva que é transferida. 

Naturalmente, estou me referindo às condições técnicas, materiais, para a ultrapassagem da sociedade dividida em classes sociais. As condições políticas para que isso ocorra, são outros quinhentos, como se diz. Afinal, as forças produtivas não caminham sozinhas. Assim, haverá uma disputa em torno dos rumos que a sociedade deverá tomar. Por ironia da História, durante a Revolução Russa de Outubro de 1917, estavam reunidas as condições políticas para a ruptura com a sociedade comandada pelo grande capital, mas não estavam reunidas as condições propriamente técnicas. Hoje, dá-se o contrário: há as condições técnicas sem que haja as condições políticas. A História também falta aos seus próprios encontros. dir-se-ia.

Ao que tudo indica, a automação representará um corte tão profundo na trajetória da Humanidade quanto a passagem do sistema de caça e coleta para a fase neolítica. Tudo leva a crer que estamos começando a viver uma situação em que as classes deixam de ter “utilidade” social, para retomarmos uma expressão de Paul Lafargue, em texto datado de 1872, ao se referir ao fato de que, historicamente, uma classe dominante pode perder a sua razão de ser, como ocorreu com a nobreza sob o feudalismo. Do mesmo modo, a burguesia pode perder a sua razão de existir, levando com ela, de roldão, a classe operária, ao menos tal qual a conhecemos hoje. Aí fica aberta uma brecha para o trabalho por conta própria — o novo "chão da fábrica".  

Além disso, essa mesma tecnologia sem dúvida impactará o desenvolvimento biológico do homem, que permanece praticamente o mesmo há milhares de anos. Talvez a grande modificação já esteja, no entanto, diante de nós, com o chamado transumanismo, ou a transformação do homem a partir do uso dos recursos tecnológicos disponíveis hoje, como a nanotecnologia, aumentando a capacidade cognitiva do homem atual. Mais: na esteira das inovações científicas, surge inclusive uma nova intelectualidade, de base mais técnica. 

Bem-vindo, leitor, ao admirável mundo novo. 

*Ivan Alves Filho, historiador

Nenhum comentário: