Gilvan Cavalcanti de Melo
Junho 2007
É sintomático que muitos estudiosos subestimem a importância e desprezam o fato que não se pode conhecer a realidade sem uma teoria da realidade. Deveriam ter, pelo menos, mais benevolência quando os herdeiros da tradição de Marx se dedicam à elaboração de uma nova teoria da história, base fundamental de qualquer teoria da política.
Não há dúvida que existe um grande atraso nesse campo. É também verdade que se desenvolve uma infecunda e redundante teoria do “abuso do principio da autoridade” do fundador da filosofia da práxis. E em contra partida oferecem “instrumentos sempre mais perfeitos” mas, negam o direito de buscá-los no pensamento de Marx, sobretudo nos momentos que toda tradição necessita ser repensada frente às grandes transformações que se produzem no presente.
Em primeiro lugar, cada época e cada geração definem suas tarefas a cumprir e apresentam seus resultados em relação com a tradição. Em segundo lugar, esse é um elemento indispensável, pois os instrumentos de análise do presente sempre têm sua origem no passado e de uma relação, no tocante com o passado, o mais crítica possível. Em terceiro lugar, é estranho que se tenha tão pouca compreensão para com aqueles que se dedicam à modular os próprios instrumentos de investigação na tradição do pensamento de Marx. Quando muitos desses estudiosos se declaram abertamente extrair os seus instrumentos de interpretação de outras tradições, como Thomas Hobbes (1588-1679), John Locke (1632-1704), Adam Smith (1723-1790), Emmanuel Kant (1724-1804, bastante mais distante, cronologicamente, da presente estrutura mundial. E, pior, sem compreender a centralidade da relação Friedrich Hegel (1770-1831) e Karl Marx (1818-1883), como forma emergente do desenvolvimento da subjetividade histórica, da iniciativa política e de elevação da crítica à altura da forma política.
O socialismo enfrenta, neste inicio do Século XXI, múltiplos desafios de extremas dificuldades e constitui uma enorme tarefa: trabalhar para avançar, simultaneamente, a causa da liberdade e da igualdade em um mundo amplamente globalizado, no qual domina uma potência hegemônica, praticamente, sem um contra-ponto.
O socialismo tem a obrigação de construir uma proposta política e cultural capaz de enfrentar a profunda transformação científico-tecnológica e econômico-social, que aconteceu no mundo, nos últimos anos. E, ao mesmo tempo, oferecer uma alternativa de progresso diante das desigualdades e injustiças do capitalismo contemporâneo.
As idéias socialistas jogaram um papel importante na história da humanidade. Suas raízes se fundem na luta, permanente, do ser humano pelo reconhecimento da sua dignidade e por transformar em realidade aqueles grandes ideais de liberdade, igualdade e fraternidade.
O socialismo, em sua forma atualizada, expressa a vontade política e o movimento histórico mais conseqüente por tornar possíveis as promessas e os sonhos que emergiram da Revolução Francesa, daquela radicalidade democrática que deixou como herança a Declaração Universal dos Direitos do Homem, o nascimento da cidadania moderna e a República como forma de governo, fundamentado na soberania popular.
A enorme contribuição do socialismo foi sua lúcida visão e luta de que estes valores e ideais não poderiam se concretizar, historicamente, sem que o ser humano saísse da escravidão, da pobreza material. Daí, sua persistência e paixão pela igualdade.
A liberdade só seria possível se todos, sem exclusões, pudessem ascender às condições materiais essenciais. Somente, assim, seria realidade para todos, e não para a minoria, os direitos básicos e a nova condição de igualdade que significa o reconhecimento da cidadania democrática.
Em sua longa história, o socialismo teve grandes acertos e, também, graves erros. No seu amplo alcance, entretanto, deixou um rastro de lutas que permitiu aos grupos subalternos conquistar maiores espaços de liberdade e reconhecimento de direitos essenciais. Colocou limites ao capitalismo, nas suas expressões mais brutais e selvagens. Foi fundamental na construção de diversas instituições e leis a favor de melhores níveis de igualdade e justiça.
O movimento socialista mundial adotou diversas formas e expressões ao longo de sua história. Durante o Século XX se bifurcou entre suas vertentes comunistas e social-democratas e se encarnou em diferentes movimentos de libertação nacional nos países subdesenvolvidos e dependentes.
Neste processo, provavelmente, os maiores erros vieram de uma concepção dogmática de socialismo, que derivou em diferentes experiências históricas, que em nome de um futuro de mais liberdade e justiça se sacrificou a democracia. O fim do comunismo, nos chamados países do socialismo real, significou o esgotamento de uma experiência que, claramente, demonstrou que o socialismo só podia se construir através da democracia.
Por outro lado, o movimento social-democrata conseguiu se desenvolver em alguns países capitalistas avançados, porém, sem transformar aquelas sociedades nem superar as lógicas concentradoras e excludentes da economia capitalista. Sem dúvida, a herança mais importante que deixou foi, em alguns países, o Estado do Bem-Estar que significou um grau de reconhecimento universal de certos direitos sociais e econômicos dos indivíduos.
O socialismo enfrentou o inicio do Século XX com a certeza absoluta que se constituía a principal força - muitas vezes a única - de mudança e transformação social. Com a Revolução Russa de 1917, o triunfo da Revolução Chinesa, as vitórias dos movimentos de Libertação Nacional, em várias regiões do mundo, e, depois, na América Latina, o êxito dos revolucionários cubanos, tudo parecia indicar que o século estaria marcado pelos avanços das forças revolucionárias e socialistas.
Depois, na realidade, o curso do processo foi bem diferente. O capitalismo demonstrou a capacidade para continuar revolucionando o desenvolvimento das forças produtivas e muitos processos revolucionários perderam o impulso diante da incapacidade para abrir espaços de progresso e liberdade para suas populações. Com algumas exceções, como a República Popular da China – e seu complexo “socialismo de mercado” e Cuba que explica sua sobrevivência, principalmente, pela “causa da independência nacional” frente a sistemática política agressiva dos EE.UU. Assim, o chamado “campo socialista” deixou de existir. E, portanto, não constitui mais um ator importante nas lutas atuais pela construção de um mundo melhor. A expressão máxima destas derrotas foi o desmonte da ex-URSS, provocado por suas infinitas contradições internas e aparece, hoje, como um país de desenvolvimento intermediário que enfrenta, ainda, enormes dificuldades para incorporar as formas básicas de democracia e de um capitalismo ancorado pelo estado de direito. O final do século passado teve para o “socialismo real” caráter apocalíptico. Tanto, assim, que alguns teóricos, rapidamente se adiantaram a proclamar sua derrota definitiva e declarar, inclusive, o “o fim da história”.
Longe de entrar em declínio, produto de seu desenvolvimento anárquico e a tendência à diminuição da taxa de lucro, mas com o novo ciclo científico-tecnológico, prevaleceu a tendência oposta, também prevista por Marx. O capitalismo foi capaz de se reconfigurar mais uma vez. Garantir uma impressionante capacidade de reprodução, e ampliação em escala global.
Contudo, a idéia de um mundo melhor, no qual se conjuguem liberdade e igualdade, democracia, participação e dinamismo econômico, desenvolvimento simultâneo das forças produtivas e espirituais, promoção dos interesses coletivos e a defesa irrestrita das liberdades e direitos individuais, continua a ser uma grande aspiração. Daí a atualidade e existência do socialismo. Idéia generosa, ainda em movimento, processo de busca e concretização. Idéia que só pode se desenvolver com democracia, entendido isto como uma radical socialização do poder em todas suas formas.
O socialismo só tem sentido como concepção viva, essencialmente dinâmica. Ele pode contribuir para os grandes problemas e conflitos que a humanidade enfrenta à proporção em que se entenda como uma prática de resolver as contradições sociais que de modo coerente e sistemático, coloque em primeiro lugar, a solidariedade e ação organizada da população em aberta oposição às idéias liberais, individualistas que somente procuram maximizar o bem-estar pessoal. O socialismo não pode ser compreendido como modelo estabelecido e revelado para sempre.
O mundo mudou muito. Não há dúvida. As novas técnicas revolucionaram, de modo profundo, as condições de produção e consumo e, em geral, as formas de vida cotidianas dos indivíduos. O advento da sociedade da informação, da sociedade do conhecimento é um fato que não se admite discussão. As conseqüências são múltiplas: novos conflitos e dilemas se apresentam. Não há solução fácil. As contradições sociais são, infinitamente, mais complexas e diferentes da época dos fundadores teóricos do “socialismo cientifico”. Os conflitos, de gêneros, a proteção do meio ambiente, a bioética, a diferença sexual, a globalização, são temas que colocam, sem dúvidas, problemas que excedem muito os antagonismos sociais clássicos do passado.
Com a crescente complexidade social não se pode conduzir e sustentar a tese do desaparecimento dos conflitos e da própria contraposição entre direita e esquerda. Esta idéia continua valida para sintetizar as visões diferentes para a solução destes conflitos. A noção que com o século XXI desapareceu, por ser retrógrada, a antiga distinção entre esquerda e direita é uma típica idéia conservadora. Muito diferente é quê, a nova realidade social não pode caber nas categorias clássicas do pensamento socialista. Daí, o pleno vigor da idéia: tudo na história está sujeito ao movimento permanente de transformação. “Tudo que é sólido se desmancha no ar”. Não existem instituições definitivas, nem valores eternos. A história é um complexo devir em que novas formas surgem sem cessar, um processo dialético no qual, em função das tensões internas da realidade social, constantemente se modifica. Assim, o socialismo não formula princípios absolutos, de abstrata validade universal. Parte da consideração realista do homem concreto, sujeito de carecimentos, sempre em mudanças, portador de valores históricos.
O Capitalismo pode exibir a seu favor um desenvolvimento, em muitos aspectos, extraordinário da ciência e tecnologia. As forças produtivas alcançaram níveis altíssimos, sendo possível, em teoria, encontrar soluções de problemas como a fome, a desnutrição, que durante muito tempo se pensava serem parte da ordem natural das coisas.
Entretanto, estes desenvolvimentos, com todas as novas possibilidades que revelam avanços na biotecnologia e clonagem, tecnologias da informação, digitalização, modelação matemática de alta sofisticação e importante capacidade predicativa, conhecimento maior dos sistemas de alta complexidade e outros, colocam bem à superfície a enorme fenda entre essas possibilidades e as realidades do mundo realmente existente. É um fato incontroverso que junto a estes avanços, o capitalismo, em sua expansão em escala global, não foi capaz de eliminar nenhum dos grandes dramas e carecimentos da existência humana, a começar pelos mais elementares: habitação, alimentação, a marginalidade, a exclusão, a degradação do meio ambiente. E, ainda, o que é pior, a condição humana nas suas mais diferentes expressões de precariedades são comuns, inclusive, no país hegemônico. O capitalismo como forma dominante de organização a nível mundial penaliza amplas regiões a viver em inaudita marginalidade, exclusão e atraso. E, ao mesmo tempo, apresentaram-se novas feridas, novas desgraças como o narcotráfico, o vendedor e consumista de drogas, o terrorismo e o crime internacional, diante dos quais as respostas são muito tímidas. No interior de cada país a miséria e a desigualdade continuam a penalizar, no cotidiano, grandes setores da população. Igualmente, é uma realidade indiscutível que o militarismo e as guerras constituem elementos inseparáveis da história do capitalismo.
O século XXI apresenta, portanto, grandes oportunidades e ameaças graves. O socialismo contemporâneo poderá contribuir de maneira decisiva para que as oportunidades prevaleçam sobre as ameaças. Por isso, ao exibir essa demonstração sintética do seu patrimônio o socialismo tem a obrigação e o direito de avaliar seu desempenho e em continuação se colocar para cumprir tarefas mais ambiciosas. Esta é a sua razão de ser. O socialismo e a esquerda, em geral, só tem sentido enquanto representarem a visão crítica sobre a ordem realmente existente. No momento em que se tornar prisioneiro do pensamento dominante, no dia em que substituir seu olhar crítico pela complacência, na ocasião em que renunciar a confrontar-se com as perspectivas individualistas, em todas suas variantes e esquecer os sonhos, aí deixa de ter razão à existência. Poderá administrar o Estado, concorrer nos pleitos eleitorais, municipais, estaduais e federais, mas sua justificação histórica desaparecerá no instante em que abandonar a primeira linha da batalha pela transformação social.
As grandes promessas das revoluções dos séculos passados ainda não foram cumpridas. Os ideais proclamados por elas, portanto, devem ser apropriados pelo socialismo. Se por inaptidão, controvérsia, falta de vontade ou de capacidade transformadora o socialismo capitular diante de suas responsabilidades históricas, condenará a humanidade a um triste destino.
São muitos os obstáculos no caminho. É gigantesco o desafio diante do descrédito, do cansaço, do desalento e desesperança dos lutadores, o ceticismo das populações em relação as instituições democráticas como os parlamentos, os partidos políticos e uma certa prostração das convicções democráticas socialistas e da própria política. Tudo isso conspira contra a organização de poderosos, amplos e influentes movimentos transformadores da realidade existente.
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