Alessandro Giannini - O Globo
SÃO PAULO - Vencedor do Prêmio Camões de Literatura, concedido anualmente a um escritor de língua portuguesa, o autor de "Lavoura arcaica" Raduan Nassar, de 81 anos, aproveitou seu discurso de agradecimento na cerimônia de entrega para fazer críticas ao governo de Michel Temer. O evento de premiação aconteceu na manhã desta sexta-feira no Museu Lasar Segall, em São Paulo, e contou com a presença do ministro da Cultura, Roberto Freire, que acabou se envolvendo em uma discussão com a plateia ao fim do evento.
Raduan foi apresentado por Helena Severo, presidente da Biblioteca Nacional. Em seu discurso de boas-vindas, ela errou o sobrenome do escritor — o chamou de Nasser e não Nassar — e foi corrigida por ele. O autor foi escolhido por unanimidade e se tornou o 12º brasileiro a receber o prêmio, considerado o mais importante da língua portuguesa. Receberá 100 mil euros.
Em seu discurso, o escritor afirmou: "Infelizmente nada é tão azul no nosso Brasil. Vivemos tempos sombrios". Agradeceu a presença de Freire, a quem se referiu como "ministro do governo em exercício", causando uma saia justa para o político.
Criticou ainda o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Celso de Mello por ter mantido a nomeação de Moreira Franco a ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência. Raduan acusou o STF de usar "dois pesos, duas medidas", referindo-se ao que considera diferença de tratamento dado a Moreira e ao ex-presidente Lula, ambos envolvidos em denúncias da operação Lava-Jato. Enquanto Lula não pôde assumir a Casa Civil no governo de Dilma Rousseff, Moreira foi autorizado a se tornar o ministro-chefe de Temer. A mudança de status lhe dá direito a foro privilegiado.
— É esse o Supremo que temos, ressalvadas outras exceções. É coerente com seu passado à época do regime militar. O mesmo Supremo proficiou a reversão da nossa democracia sobre o impeachment de Dilma Rousseff. O golpe estava consumado, não há como ficar calado — disse o autor, que criticou ainda a indicação de Alexandre de Moraes (a quem chamou de "figura exótica") para a vaga do STF.
Estavam presentes também os escritores Milton Hatoum e Estevão Azevedo, entre outros, e o ex-ministro das Relações Exteriores Celso Amorim.
Roberto Freire ressalta "deselegância do agraciado"
Após o fim do discurso de Raduan — encerrado com a frase: "o golpe estava consumado, não há como ficar calado", e embalado por aplausos e gritos de "Fora Temer" —, o ministro Roberto Freire se manifestou, dirigindo-se à plateia. Em clima de constrangimento geral, Freire tomou a palavra e disse que "estamos vivendo um momento democrático e que é muito diferente do período de ditadura". Vaiado e contestado por parte do público, o ministro bateu boca com algumas pessoas e criticou os manifestantes dizendo que "é fácil fazer manifestação num governo como este, democrático".
— Hoje, a regra de algumas pessoas que, até por terem testemunhado na História o que é um governo resultante de um golpe que reprime, vêm aqui para ter um testemunho da ampla liberdade de um governo que até premia um adversário político. Essas pessoas que vieram aqui falar em governo de exceção causam perplexidade pela estultice, que não tem cabimento — disse ele, após a cerimônia.
Ele ainda ressaltou, em conversa com jornalistas, a "deselegância do agraciado":
— Se ele viesse para dizer que não aceitava o prêmio, poderia ser até justo todo esse teatro que ele fez. Mas recebendo tudo, com a presença de todos que quisessem se manifestar, numa demonstração de evento democrático, e dizer o que ele disse, tem que receber a resposta que ele recebeu.
Ao fim do evento, Helena Severo lamentou que a cerimônia tenha sido "desvirtuada".
— Vim aqui para entregar um prêmio literário para um grande escritor. Essa cerimônia foi desvirtuada. Luta política é uma coisa, a outra é transformar esse momento num momento de exacerbação. A condução desse processo, gritando e interrompendo o ministro, foi descabido. Não foi razoável.
No fim da manhã, o Ministério da Cultura soltou uma nota acusando o PT de "aparelhar órgãos públicos e organizar ataques para tentar desestabilizar o processo democrático".
Os livros de Raduan Nassar
'Lavoura Arcaica' (1975)
Primeiro romance do autor, chamou a atenção pela forma elaborada de narrar a história de André, um jovem que foge de uma sufocante vida rural, e suas delicadas e traumáticas relações familiares. Venceu vários prêmios. E virou filme em 2001, com Selton Mello e Simone Spoladore no elenco, sob a direção de Luiz Fernando Carvalho
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