- O Estado de S. Paulo
Um ponto fora da curva da tradição política americana recente
Raymond Aron, ao tratar dos níveis de compreensão que o campo das relações internacionais oferece, sublinha que não cabe a analogia nem com o futebol nem com a economia. O futebol tem regras, juiz e o preciso objetivo de dois times de ganhar a partida, disputada em campo delimitado e com número fixo de participantes. A economia concentra-se num problema claro, a escassez, e dedica-se à busca de soluções para escolher modos possíveis de utilizar com eficiência e equidade os recursos existentes.
Nos dois casos, apesar da variedade de táticas e estratégias, há clareza quanto aos objetivos. Nas relações internacionais, não: seus objetivos não são unívocos. Destaco isso para analisar o que significa para o mundo a ascensão de Donald Trump à Presidência dos EUA.
Fatores básicos condicionam a condução da política externa de qualquer país: espaço e localização geográfica, demografia, recursos, pluralidade das identidades nacionais e diversidade dos regimes políticos. O que caracteriza as relações internacionais é que os fatores não são sempre mobilizados por um só objetivo e podem favorecer ora mais, ora menos, dependendo da conjuntura interna e externa, a segurança, o desenvolvimento, o bem-estar, o prestígio, a afirmação de ideias.
A mudança de objetivos de política externa de uma grande potência como os EUA tem repercussão geral. Com efeito, estes se caracterizam por terem não apenas interesses específicos, mas interesses gerais no funcionamento do mundo por conta, como dizia Campanella, de suas ambições universais. Daí a pergunta: qual é a repercussão para o mundo do interesse específico do excludente “America first” de Trump? É um confronto com os elementos de continuidade da política externa dos EUA desde o fim da 2.ª Guerra e com a institucionalidade da ordem mundial que ajudaram a moldar.
Toda quebra de continuidade provoca incertezas e induz reações num mundo instável, de polaridades indefinidas, permeado pela geografia das paixões e alimentado pelas forças centrífugas dos múltiplos particularismos presentes na vida internacional.
As pessoas e o seu modo de ser têm o seu papel na conformação dos acontecimentos. Trump conduziu a sua campanha eleitoral com um bullying destituído de civilidade. Foi bem-sucedido ao granjear o apoio dos descontentes e o seu mal-estar. Sua postura em relação ao mundo também se caracteriza por bullying. Basta mencionar o ofensivo porrete do tratamento dado ao México no caso da construção de um muro na fronteira. O vitorioso não muda o método de agir, e cada um tem a estratégia de sua personalidade. O bullying será a maneira como exercerá a Presidência, com as naturais reações conflitivas.
Daí a pergunta subsequente: as instituições e a sociedade americanas vão aparar essa postura? As reações aos decretos sobre vistos e refugiados já estão no âmbito do Judiciário, indicando que a sua gestão será conflitiva.
Trump é um ponto fora da curva da tradição política americana recente, que sempre levou em conta preservar, e não corroer, um centro dinâmico vital, aglutinador da esperança da liberdade e da abundância econômica. Esse centro, dependendo das conjunturas, ora se inclinou para a direita, ora para a esquerda, mas um cuidado com a sua preservação sempre esteve nos cálculos políticos.
O discurso de posse de Trump é inequívoca expressão de proposta de ruptura. A tradição política americana explica os elementos de continuidade de uma política externa que vem assegurando a persistência de um espaço de primazia dos EUA, numa mescla própria do uso da força militar, do recurso ao poderio econômico-comercial e do [ITALIC]soft power[/ITALIC] da persuasão e da atração.
É essa mescla que Trump põe em questão. Daí a indagação: as complexidades do mundo vão conter a proposta de bullying de Trump ou vão exasperar as tensões e os conflitos existentes na vida internacional?
Avalio que o bullying de Trump, se não for aparado pela razoabilidade, será um redutor da confiança internacional, um intensificador de tensões difusas, e vai dilapidar o capital simbólico dos EUA. No campo econômico-comercial, tende a estimular guerras comerciais, protecionismo, xenofobia e autarquia, além de pôr em questão instâncias de regionalismo econômico e comprometer ainda mais o sistema multilateral de comércio. No meio ambiente, pode se traduzir num recuo do consenso alcançado na Conferência do Clima de Paris. No campo estratégico-militar, pode afetar equilíbrios delicados se minar a Otan ou recuar nos compromissos de segurança com Japão e Coreia do Sul. No Oriente Médio, voltar atrás, sem base, no acordo com o Irã contribuirá para agravar os intensos conflitos da região e aumentar o número de Estados falidos. Provocar a China e não lidar com seu crescente poderio levará a impasses, não a soluções.
O desapreço pela Europa comunitária e o apoio ao Brexit ajudarão a minar uma grande construção de integração que trouxe paz, democracia e desenvolvimento a uma região historicamente conflitiva e favorecerão as já significativas tendências autoritárias e antidemocráticas. Desconsiderar a ONU é pôr em questão a importância da demanda de ação multilateral que, ainda que imperfeitamente, a instituição provê.
A postura ofensiva contra o México alcançará a América Central e contribuirá para um surto de antiamericanismo na região. Um recuo na normalização da relação com Cuba será um passo atrás no equacionamento de uma das pendências remanescentes da guerra fria.
Finalmente, o fechamento arbitrário e discriminatório das fronteiras não só não vai conter o terrorismo, mas é uma visão caolha, que deliberadamente oculta a relevância do grande tema global da imensa massa de refugiados, que são os deslocados do mundo, arendtianamente expulsos da trindade Estado-povo-território.
*Professor emérito do Instituto de Relações Internacionais da USP, foi ministro das Relações Exteriores no governo FHC
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