Como livrar os amigos, de Moro, sem preservar Lula?
A crise política não para de surpreender. Como em um bom livro policial, cada capítulo traz surpresas e se fecha com uma reviravolta. Confrontos se multiplicam, alianças se refazem. Novos acontecimentos vêm à baila a todo instante.
A troca de guarda no governo, aposta de muitos como a forma de recuperar a tranquilidade e a previsibilidade na política e na economia, não alterou o ritmo intenso da narrativa. A novela segue em capítulos curtos, com alta emoção e final imprevisível.
Em artigo publicado na grande imprensa para marcar o primeiro aniversário de seu governo, o presidente procurou frisar, logo na abertura, a ruptura que a sua chegada ao poder teria representado: "Há um ano o Brasil estava mergulhado no déficit e na mais profunda recessão de sua História. As mudanças eram inadiáveis. Não só na economia, mas também no modo de fazer política e de governar".
Para os mais inflamados dos dois lados que foram às ruas em Curitiba, quem governa faz toda a diferença. Os petistas denunciam os novos governantes como golpistas e reacionários. Já para os que apoiaram a deposição de Dilma, livrar-se dela fez um mar de diferença.
Entretanto, as revelações dos últimos capítulos contribuíram para reordenar a posição dos personagens centrais do drama. De repente, os lados da contenda deixaram de ser tão claramente demarcados. Paladinos da justiça e da moral são pegos organizando cartéis para captar recursos da mesma fonte que servia seus adversários. Moro, por outro lado, passou de líder da regeneração moral do país a egocêntrico comandante de "um tribunal de exceção", ávido por condenar Lula sem respeito às provas e ao devido rito processual.
Mas como livrar os amigos das garras de Moro sem preservar a candidatura Lula? Esta seria uma cartada arriscada e só se justificaria em caso de risco maior ameaçando a empreitada que levou Temer ao poder. Eduardo Cunha continua detido e, por enquanto, só emitiu sinais do que sabe e do que pode falar. Se optar por delatar, a história toma rumo imprevisível.
Para quem bateu panela contra Dilma, não faltam motivos para duvidar que a nova administração tenha representado uma ruptura ética com o passado. Quem estiver atento à trama, com certeza, se deu conta de que personagens como Eliseu Padilha, Moreira Franco e tantos outros estão longe de desempenhar papéis secundários nesta história. São eles que dão continuidade à narrativa, rondando as "cenas dos crimes" investigados pela força-tarefa. Não é demais frisar, os personagens já estavam no pedaço muito antes de o PT chegar ao poder.
Assim, se há "corrupção sistêmica" e se combatê-la é o objetivo primordial de Sergio Moro, nos próximos capítulos, com certeza, podemos esperar por novos desdobramentos no confronto entre a força-tarefa e o governo Temer. Entretanto, nestes casos, como os personagens próximos a Temer contam com a proteção do foro privilegiado, a força-tarefa tem seu escopo de ação limitado.
Contudo, em seu artigo-programa, Moro afirma que quando a condenação judicial é difícil, "a opinião pública pode constituir um salutar substitutivo, tendo condições melhores de impor alguma espécie de punição a agentes públicos corruptos, condenando-os ao ostracismo." Moro, interessante frisar, refere-se à pressão da opinião pública e não ao voto. Seja como for, por meio da sua esposa, na última semana, o juiz passou a se comunicar diretamente com aqueles que apoiam a sua cruzada, dando instruções sobre quando devem ir às ruas, quando devem se retirar. No meio do conflito que se arma, com certeza, terá que recorrer novamente à sua senhora para instruir seus apoiadores.
O fato é que o governo Temer luta desesperadamente para evitar ser tragado pelo turbilhão e não se juntar à pilha de vítimas feitas pela Lava-Jato. Para que a mudança de governo se justifique, para que possa reivindicar ter sido uma ruptura, só lhe resta mostrar sua capacidade na economia. O diagnóstico de Temer está correto: o país "estava mergulhado no déficit e na maior recessão da sua história", quando tomou o poder. Errou, contudo, no tempo verbal empregado. Neste ponto, a história tem sido marcada pela monotonia. Nada mudou. O país continua em crise profunda.
Neste plano da narrativa, portanto, o que temos é um anticlímax, uma daquelas pistas falsas em que, às vezes, o leitor incauto é induzido a crer ao longo da história. O mercado, um personagem central do drama, não reagiu como esperado. Não foi suficiente colocar gente que entende do riscado e sabe falar a sua língua nos ministérios. A economia continua patinando. O mercado pede provas mais robustas para renovar sua confiança no governo.
Por isto mesmo, nas semanas que entram, as atenções se voltarão para a tramitação da reforma da Previdência. Para o governo, aprovar a reforma é sua última chance de mandar os sinais de que representa uma ruptura, que de fato se pauta por "um novo modo de fazer política". Do sucesso da medida, portanto, depende o apoio do seu último grande sustentáculo. Como nenhuma proposta deste tipo tramita sem trancos e aproximações ao barranco, não faltarão emoções nas semanas que entram.
As maiores emoções, contudo, parecem continuar por conta da operação Lava-Jato. Lula conseguiu escapar ileso das armadilhas preparadas pela força-tarefa. Não se contradisse ou forneceu provas. Mesmo os vídeos de Monica e João Santana, por comprometedores que sejam seus depoimentos, não trouxeram grandes novidades ao enredo.
A provável delação de Palocci passou a ser a grande ameaça, a grande incógnita que paira sobre o desenlace desta novela. Pelo que já transpirou, o ex-ministro promete envolver novos personagens, gente de peso até aqui ignorada, mudando inteiramente a direção da trama. Se Cunha também resolver falar, aí o circo pega fogo e vai faltar água no mercado....
------------
Fernando Limongi é professor do DCP/USP e pesquisador do Cebrap.
Nenhum comentário:
Postar um comentário