sexta-feira, 24 de julho de 2020

Flávia Oliveira - Como as cidades morrem

- O Globo

A metrópole é informada do desaparecimento de empreendimentos diariamente

Tal como democracias, cidades morrem. Em meio à mais pavorosa crise humanitária em um século, o Rio de Janeiro fenece um pouco a cada dia. Há o desgoverno — um presidente da República negacionista, um governador à beira do impeachment, um prefeito vacilante — que testa a resiliência de repartições e serviços públicos. Há a deterioração das condições de vida e saúde da população. Há o ambiente econômico perverso, que ameaça atividades que, bem cuidadas, seriam tesouros do território. Quando o dilúvio passar, a cidade terá perdido também parte de sua história, na esteira de artistas, personagens e estabelecimentos que a forjaram. Perder a memória é morte.

Diariamente, a metrópole é informada do desaparecimento de empreendimentos que moldaram comportamentos, geraram sustento, guardavam enredos. Na temporada nefasta, cerraram as portas os restaurantes Hipódromo, 75 anos; Mosteiro, 55; O Navegador, às vésperas dos 45; o Baródromo, novato que ganhou relevância pela devoção ao carnaval das escolas de samba.

“É uma das expressões tristes dos impactos da Covid na vida das cidades, das pessoas. De um lado há o efeito imediato no emprego, na arrecadação de tributos. Mas há também o lado da memória, da história que esses lugares construíram como espaços de encontro, de sociabilidade na cidade. É muito triste ver a ausência do poder público para ajudar esses empreendimentos a sobreviverem”, diz o geógrafo Henrique Silveira, coordenador da Casa Fluminense, organização dedicada à agenda de desenvolvimento social e econômico da região metropolitana.

Nunca foi segredo que os setores de turismo, alimentação, cultura e entretenimento seriam os mais afetados pela pandemia. São atividades dependentes da aglomeração e da circulação de pessoas, incompatíveis com o isolamento social. Bares e restaurantes amargam prejuízos com a clientela aquarentenada. A hotelaria teme o destino do réveillon, ainda sem destino. A festa abre a temporada de verão e reúne, nos superestimados números oficiais, mais de dois milhões de pessoas na orla de Copacabana. Cinemas, teatros, livrarias fazem malabarismos em sessões virtuais e/ou financiamento coletivo para atravessar o breu. O poder público silencia.

O mundo da folia sentiu o fechamento da centenária Casa Turuna, outrora sinônimo de fantasias e adereços. O próprio carnaval das escolas e dos blocos, festa maior da maravilhosa cidade, está mergulhado na incerteza. A Liesa adiou para setembro a decisão sobre os desfiles; meia dúzia de agremiações condiciona o espetáculo à descoberta e aplicação da vacina. Dias atrás, uma Estação Primeira de Mangueira rendida avisou aos funcionários que não tem mais como pagar-lhes. Não se trata somente de adiar ou cancelar o evento. É urgente um plano de travessia, que garanta ocupação e renda aos trabalhadores, a maioria em situação aguda de vulnerabilidade.

Pesquisa do Sebrae mostrou que, Brasil afora, depois da Covid-19, 25% dos bares, restaurantes, lanchonetes e cafés reduziram a zero o faturamento; 29% sofreram queda superior a 75% nas receitas. No período, um em cada quatro (27%) fecharam as portas temporariamente, 4% em definitivo. Sete em dez não aguentam mais de dois meses na atual conjuntura; 45% já demitiram.

Ainda ontem, o IBGE divulgou resultados de junho da Pnad Covid-19, pesquisa que acompanha os efeitos da pandemia no mercado de trabalho. O setor de alojamento e alimentação ainda está com 23,1% dos funcionários afastados; o comércio, com 12,8%. É cenário gravíssimo que não será superado sem diálogo e participação do Estado. As medidas de proteção ao emprego, com redução de jornada e salário, suspensão de contratos, vão preservar vínculos entre patrões e empregados por até oito meses — quatro de acordo, quatro de estabilidade.

As empresas dão sinais de que não têm fôlego financeiro para suportar a crise prolongada. O IBGE contabilizou, em todo o país, 522 mil empresas fechadas em decorrência da pandemia. Nos primeiros meses de crise, empresários sofreram com escassez de crédito. Na área de alimentação, segundo o Sebrae, 39% das que tentaram empréstimos não conseguiram. Em menos de um mês, a linha de R$ 16 bilhões com garantia do Tesouro Nacional chegou ao fim; assistiu no período 182 mil micro e pequenas empresas. Há promessa de recursos, mas cada dia de espera e indefinição as aproximam do túmulo.

Nenhum comentário: