Suspeito que, em 2022, todas as versões do governador marcharão juntas, num cortejo ritmado pela batida do oportunismo
"Os
dois fazem política com a vacina" —no rastro do bate-boca
entre João Doria e Eduardo Pazuello, sobraram analistas dispostos a
colocar um sinal de equivalência entre o governador paulista e Jair Bolsonaro.
A pretensa identidade sustenta-se na ideia de que a política é um domínio
tóxico —e no corolário segundo o qual, quando se trata de uma pandemia, deve
ser substituída pela pura razão científica.
Nenhuma
nação enfrentou a pandemia sem apelar à razão política, pelo simples motivo de
que existem argumentações científicas capazes de justificar diversas abordagens
(embora nem todas: cloroquina não vale!). A
Itália aplicou rígidos "lockdowns". A
Alemanha, quarentenas moderadas. A
Suécia, suaves restrições sanitárias. Nos três casos, especialistas
conceituados divergiram entre si e os governos adotaram as decisões finais,
guiadas pela política. No caso da vacina, Doria faz a boa política, norteada
pelo interesse público mais vital —e, se isso o beneficia politicamente, melhor
para ele.
O lance magistral foi a divulgação antecipada do cronograma de vacinação paulista. O xeque ao rei obrigou o governo Bolsonaro a mover suas peças.
O
governo federal apostou tudo numa única vacina, a de Oxford/AstraZeneca, cujos
testes sofreram atraso. Ignorando a Coronavac, que mantém contrato com o
Butantan, Pazuello anunciara o início da imunização para as calendas de abril.
De repente, açoitado por Doria, o ministro da Doença girou 180 graus,
negociando a compra
de estoques da vacina Pfizer/BioNTech, algo que antes descartara. Mais:
no compasso do pânico, antecipou o começo da vacinação para "dezembro ou
janeiro", um compromisso que dificilmente poderá honrar.
O
plano original de Brasília era usar a Anvisa para postergar a aprovação do
imunizante que o presidente rotula como "vacina chinesa" até depois
da inoculação das primeiras doses da "vacina federal". Tratava-se de
sacrificar deliberadamente as vidas de milhares de brasileiros no altar da
febre ideológica bolsonarista e dos cálculos eleitorais de Bolsonaro. Doria
frustrou a ofensiva da infantaria presidencial contra a saúde pública.
A
guerra prossegue, em novos teatros. O contra-almirante
Barra Torres, chefe da Anvisa, um soldado raso tão obediente quanto o
submisso general Pazuello, ameaça enrolar a avaliação da Coronavac por
infinitos 60 dias, que valem (na cotação atual) cerca de 39 mil óbitos. Mas,
sob pressão da opinião pública e da peregrinação de estados e municípios às
portas do Butantan, é provável que o Congresso ou o STF dispersem a caravana da
irracionalidade, impondo a vacinação geral.
O
Doria da vacina, que emerge vitorioso do bom combate, contrasta com dois outros
Dorias, insensíveis ao interesse público.
O
primeiro é o governador que propiciou o fechamento eterno das escolas
paulistas. Pelo
mundo afora, em nações ricas e pobres, estudos avalizados pela OMS comprovam
que escolas não são focos significativos de contágios. O prolongado
cancelamento das aulas presenciais cobra preço devastador das crianças pobres e
de seus pais. Mas, curvado à resistência corporativa dos professores e ao
compreensível temor de famílias assustadas, Doria virou as costas à ciência na
qual proclama se inspirar.
O
segundo é o governador que cumpre a promessa eleitoral de proteger uma polícia
treinada no esporte de "atirar para matar". A letalidade policial em
São Paulo bate recordes históricos, vitimando centenas de jovens nas periferias
—sem, obviamente, arranhar os negócios do PCC. O Doria da vacina, que é o da
vida, convive pacificamente com o Doria da morte, um político semibolsonarista
pronto a surfar a onda da barbárie.
Qual
Doria se apresentará como alternativa a Bolsonaro em 2022? Suspeito —e espero
estar errado— que todos eles marcharão juntos, num cortejo ritmado pela batida
do oportunismo.
*Demétrio
Magnoli, sociólogo,
autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em
geografia humana pela USP.
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