Muitos
outros populistas autoritários nutrem esperança de implementar mesmo roteiro de
Trump
Como
observou Aristóteles em “A Poética”, o final de um drama deve ser
surpreendente, mas inevitável. Se isso é verdade, então os quatro anos de Donald Trump como
presidente dos Estados Unidos acabam de chegar a uma conclusão apropriada.
O
Capitólio é o edifício mais imponente de Washington. Quando turistas chegam à
cidade pela primeira vez, muitas vezes o confundem com a Casa Branca, por ele
ser tão grande.
E,
embora a democracia americana tenha passado por muitos dias turbulentos,
deputados e senadores puderam realizar seu trabalho em segurança em seus salões
majestosos por mais de dois séculos.
A
última vez em que os inimigos da democracia conseguiram invadir o perímetro do
Capitólio foi em 1814, quando tropas britânicas marcharam nas ruas de
Washington. (Houve também uma vez, em 1954, quando terroristas lutando pela
independência de Porto Rico entraram com armas na Câmara dos Representantes e
começaram a disparar nos congressistas a partir da galeria dos visitantes.)
Isso
ajuda a explicar por que os acontecimentos da quarta-feira (6) serão recordados
por décadas, diferentemente de tantos incidentes sórdidos dos últimos quatro
anos. Pela primeira vez na memória das pessoas, uma insurreição
popular interrompeu as deliberações dos representantes
livremente eleitos da população americana. E a pessoa responsável por reunir
aquela turba e mobilizá-la para agir não foi um terrorista fanático nem o líder
de alguma seita religiosa esdrúxula –foi o presidente dos Estados Unidos.
Quando
Trump perdeu por 7 milhões de votos sua tentativa de ser reeleito, ele começou
a disseminar teorias conspiratórias mais e mais desesperadas sobre suposta
fraude eleitoral. Numa quebra chocante sem precedente, ele ainda se nega a
admitir que Joe Biden
o derrotou numa eleição livre e justa.
Na quarta, esse espetáculo sórdido finalmente estava prestes a chegar ao fim. O Congresso se preparava para certificar os resultados da eleição. Nada se colocaria no caminho de Biden para se tornar o 46º presidente dos EUA.
Para
conferir um verniz superficial de apoio amplo a seu esforço de último recurso
para subverter o resultado de uma eleição livre, Trump incitou seus seguidores
a atacar Washington. Discursando para eles na manhã da quarta, ele disse:
“Vamos marchar até o Capitólio. [...] Nunca vamos retomar nosso país com
fraqueza. Vocês precisam demonstrar força.”
Encorajados
por essas palavras incendiárias –e pela fraqueza lamentável da polícia local—,
alguns manifestantes passaram por cima das barreiras frágeis que deveriam
proteger a câmara central da democracia americana.
Deputados
e senadores foram
forçados a interromper seus trabalhos importantes e a fugir
para um local de segurança. Centenas de seguidores de Trump entraram no
edifício e começaram a depredar o lugar.
Na
Câmara dos Representantes, guardas com armas em punho tentaram desesperadamente
impedir uma enxurrada crescente de manifestantes de penetrar no recinto.
A
algumas centenas de metros dali, as últimas barreiras já tinham sido
derrubadas. Um homem sem camisa, usando um chapéu gigantesco de peles com
chifres artificiais, subiu no pódio do Senado, de frente para a câmara,
flexionando os músculos em um gesto de triunfo.
No
final, a insurreição mais surreal desde a que foi vista em “Bananas”, de
Woody Allen, não chegou a ser grande coisa. A polícia finalmente
conseguiu assumir o controle do Capitólio.
O
constrangimento enorme provocado pelo dia parece ter envergonhado alguns dos
reféns de longa data de Trump, incluindo o
vice-presidente Mike Pence, e os levado a se distanciar de seu
sequestrador. Tanto a Câmara quanto o Senado votaram, com maiorias
inequívocas, para
certificar o resultado da eleição.
Mesmo
após quatro anos durante os quais Trump atacou as instituições democráticas da
América de mil maneiras, as imagens desta insurreição têm o poder de chocar e
estarrecer.
Ao
longo do dia recebi uma dúzia de mensagens de amigos de todo o mundo que não
conseguiam acreditar nas imagens de Washington que estavam chegando às suas
telas. No entanto, para os estudiosos do populismo autoritário esses
acontecimentos também parecem ter sido inevitáveis.
Desde
que Trump ingressou na política, ele sempre deixou claro que ele e mais ninguém
representa verdadeiramente o povo americano. É essa convicção que a cada
oportunidade o colocou em conflito
com qualquer instituição democrática que tenha limitado seu
exercício do poder, movido por seus próprios caprichos. Na visão de Trump, nem
juízes nem representantes eleitos tinham o direito de subverter a vontade do
povo americano, conforme interpretada por sua própria mente narcisista.
Essa
convicção fundamental também ajuda a explicar por que Trump se mostrou incapaz
de aceitar que o resultado da eleição foi legítimo.
Como
o republicano considera que ele próprio é a verdadeira voz do povo, é
impossível que qualquer eleição que pareça demonstrar o oposto seja livre ou
justa.
Para
quem acredita em sua premissa populista, teorias conspiratórias obscuras sobre
votos roubados são a explicação mais lógica para um fato que de outro modo
seria impossível.
Tudo
isso é repulsivo e constrangedor. Mas, em meio a tanta coisa repugnante, não
devemos esquecer que nos últimos quatro anos a democracia americana passou em
uma prova difícil na qual muitos outros países foram reprovados, tragicamente.
A
imprensa americana noticiou os ataques de Trump contra instituições
democráticas. Organizações da sociedade civil defenderam essas instituições de
maneiras imaginativas. Dezenas de milhões de americanos votaram para afastar
Trump do poder.
Autoridades
eleitorais locais resistiram com coragem notável a esforços intensivos de
intimidação. E, sim, um bom número de deputados e senadores republicanos acabaram
apoiando a certificação da eleição.
As
instituições americanas estão gravemente feridas. Mesmo no caso mais otimista,
levarão décadas para recuperar seu prestígio anterior e a confiança de que
gozavam. As imagens de quarta-feira vão nos assombrar por muitos anos ainda.
Mas
em inúmeros outros países, da Europa à Ásia e da África à América do Sul,
populistas autoritários conseguiram assumir controle pleno do sistema político.
E muitos outros aguardam nos bastidores, na esperança de implementar o mesmo
roteiro.
A
vitória dos populistas não é inevitável. Porém, depois de testemunhar os danos
assustadores que um astro narcisista de reality show conseguiu infligir à
democracia mais antiga do mundo, ninguém deve se surpreender se eles conseguirem
fazê-lo em muitos outros países também.
O
conflito monumental entre democracia e populismo apenas começou.
*O cientista social Yascha Mounk é professor associado na Universidade Johns Hopkins e autor de "O Povo contra a Democracia".
Nenhum comentário:
Postar um comentário